Introdução
As denominações que acompanham a discussão sobre a deficiência ao longo dos séculos criaram categorias científicas, diagnósticos, processos de institucionalização, formas de socialização, metodologias de ensino que foram moldando olhares e práticas em relação às pessoas que apresentam diferenças corporais, sensoriais, cognitivas. Tais nomes, muitas vezes naturalizados e incorporados às relações sociais, escondem histórias e processos complexos que dizem respeito a ideais sociais, posições de poder e hierarquias muitas vezes pouco problematizadas.
Considerando esses aspectos, este artigo aborda a temática da deficiência no contexto do povo indígena Xakriabá (Minas Gerais) e visa discutir como os corpos são constituídos com e sem deficiência a partir das práticas de circulação do conhecimento presentes nesse povo e da noção de performance, tal como proposto pela Teoria Ator-Rede (Latour, 2012). Em contextos nos quais as denominações da deficiência se encontram menos instituídas e cristalizadas, interrogar como os povos indígenas lidam com as diferenças corporais, cognitivas, sociais, pode se configurar como um caminho potente para o entendimento da pertinência da noção de deficiência para cosmovisões não-hegemônicas. Tal caminho permite, ainda, questionamentos em torno da naturalização dos lugares sociais conferidos às pessoas com deficiência nas sociedades ocidentais e dos movimentos de reprodução dessas visões em relação aos povos indígenas.
Para formular essas articulações, o texto se inicia com uma breve apresentação de dados relativos aos povos indígenas brasileiros e, mais especificamente, ao povo indígena Xakriabá, Em seguida, são retomados estudos acadêmicos que problematizam a questão dos corpos com e sem deficiência nos povos originários brasileiros, bem como conceitos da Teoria Ator-Rede (TAR), que fundamentaram a realização da observação-participante, ocorrida no Território Indígena Xakriabá entre os anos de 2017 e 2019.
Entre as belezas e quenturas do Norte de Minas: uma breve apresentação do povo Xakriabá
Conforme dados do Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, 896 mil pessoas se declararam indígenas nesse ano, sendo que, destes, 36,2% viviam em área urbana e 63,8% na área rural. Em 2010, esse número de pessoas se encontrava distribuído em 305 etnias e o país contava com o registro de 274 línguas indígenas diferentes, o que aponta a impossibilidade de pensarmos em uma unicidade cultural indígena no Brasil. Se pensarmos comparativamente em relação a séculos passados, podemos observar que esse número sofreu grande declínio a partir da chegada dos portugueses em 1500. Nesse sentido, Freire (2004) retoma o trabalho realizado pelo linguista tcheco Cestmir Loukotka em 1968, onde o pesquisador relata a existência de mais de 1.300 línguas faladas em torno do século XVI, o que indica a perda de um riquíssimo complexo linguístico ao longo do tempo.
Um outro ponto a ser destacado se refere à constituição das cosmologias indígenas por entidades humanas e não-humanas, o que dá lugar a diversos seres híbridos, comprovando a indissociação homem-natureza-cultura para os povos originários. Viveiros de Castro (2004) define essa multiplicidade como multinaturalismo, ou seja, uma cultura e múltiplas naturezas, ontologias variáveis, em que “a concepção ameríndia suporia, ao contrário, uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos. A cultura ou o sujeito seriam aqui a forma do universal, a natureza ou o objeto a forma do particular” (p. 226).
Do ponto de vista geográfico, a Região Sudeste, onde se contextualizou a nossa pesquisa, é considerada a quarta região em número de pessoas indígenas, sendo Minas Gerais o segundo estado com maior número de residentes indígenas, dividindo-se em dezoito etnias, conforme o Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES, 2020): Maxakali, Xakriabá, Krenak, Aranã, Mukuriñ, Pataxó, Pataxó hã-hã-hãe, Catu-Awá-Arachás, Kaxixó, Puris, Xukuru-Kariri, Tuxá, Kiriri, Canoeiros, Kamakã, Karajá, Guarani e Pankararu1. Os Xakriabá, também conhecidos como os antigos habitantes do Vale do São Francisco (Correa, 2018), são considerados o maior grupo indígena do estado de Minas Gerais. Dados apontam que 67,7% da população do município de São João das Missões, cidade onde se encontra grande parte dos Xakriabá, autodeclararam-se indígenas no Censo, computando 7.936 pessoas na época (IBGE, 2010). Todavia, tais dados divergem de outros, podendo ocorrer uma variação entre 9.196 pessoas (FUNASA/ISA, 20222) e 11 mil indígenas (Correa, 2018). A Terra Indígena Xakriabá (TIX) localiza-se, portanto, ao norte do estado de Minas Gerais, à esquerda das margens do Rio São Francisco, no município de São João das Missões, fazendo divisa territorial com os municípios de Itacarambi, Cônego Marinho e Miravânia. Porém, esse último não corresponde ao território original desse povo.
Nas terras Xakriabá, a vegetação predominante é o cerrado e as estações das águas e estiagem são bem-demarcadas, sendo percebidos períodos maiores de seca ou estiagem em comparação aos de chuva ou das águas. Esses estágios bem definidos possibilitam que se vislumbrem diferentes tonalidades de cores. No tempo da seca, pode-se admirar as diversas nuances de marrom das estradas de terra, em uma escala de cores que atinge uma variedade de tons de cáqui, englobando ainda tons avermelhados, alaranjados e roxos.
O povo Xakriabá faz parte dos povos que conviveram fortemente com a colonização desde a chegada dos portugueses ao Brasil, pois compuseram a primeira rota de dispersão dos colonizadores. Tal mestiçagem foi reproduzida nos relatos do francês Saint-Hilaire, no ano de 1817, como destaca Correa (2018). Até o século XVII, de acordo com as palavras de Silva (2018), o povo Xakriabá tinha a sua cultura preservada, ou seja, sem a interferência ou influência dos não-indígenas. Tal realidade se modificou no final do mesmo século, com a chegada do Bandeirante paulista Matias Cardoso de Almeida, responsável por dizimar parte dos Xakriabá e escravizar os que permaneceram vivos, utilizando-os como força braçal na construção de estradas e igrejas. Com isso, os sobreviventes se viram obrigados a abandonarem suas práticas ritualísticas e costumes, o que refletiu na utilização de sua língua materna e em sua religiosidade. Atualmente, os Xakriabá comunicam-se cotidianamente na língua portuguesa, com a presença de algumas poucas palavras em Akwén-Xakriabá.
A partir dessa breve contextualização, passaremos a focalizar pesquisas realizadas no Brasil sobre a questão da deficiência e povos indígenas, o que nos permitirá uma maior aproximação com cosmovisões não hegemônicas que evidenciam outras percepções sobre as diferenças corporais, suas situações de emergência e seu alcance comunitário. Ao fazê-lo, verificamos que a noção de deficiência também se transforma, ampliando-se para outras visões de mundo e de formas de interação.
Um recorte das produções acadêmicas sobre deficiência e povos indígenas do Brasil
Cada povo indígena tem suas especificidades quanto à associação corpo-deficiência, não havendo uma padronização, como indicam os estudos sobre o tema que pautaremos neste tópico.
A partir de um levantamento bibliográfico realizado em bases de dados como o Portal de Periódicos e na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Capes e a Biblioteca Digital da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), tendo como descritores os termos “indígenas com deficiência”, “indígenas surdos”, “surdos indígenas”, “atendimento educacional especializado”, “educação escolar indígena”, “intérprete de língua de sinais indígena”, foram localizados 25 (vinte e cinco) trabalhos acadêmicos de diferentes regiões brasileiras sobre o tema pesquisado. Essas produções foram publicadas entre os anos de 2008 e 2022, e abrangem diferentes etnias e temáticas. Para realização desse levantamento, não foram utilizadas fontes oficiais dos descritores porque as fontes localizadas não contemplavam o objeto de estudo focalizado no artigo.
Para diferenciar a tônica dos trabalhos, foi feita uma divisão dos mesmos em duas partes. Na primeira, reunimos as produções que discutem, dentre outros aspectos, a relação da deficiência com ancestralidade, espiritualidade, marginalidade-pertencimento. E na segunda parte, destacamos pesquisas que têm a Educação Escolar Indígena no Território Indígena Xakriabá como contexto.
Coelho (2011) sublinha a associação deficiência e espiritualidade na percepção do povo Guarani-Kaiowá. A concepção de deficiência, de um modo geral, é analisada em seu trabalho e se relaciona a fatores como má alimentação ou articulada à “[...] crença de que a constituição dos indivíduos seria determinada por entidades metafísicas [...].” (p. 76). Isso conduz à visão de que a “maneira de origem” da pessoa com deficiência deve ocorrer de forma diferente dos demais Guarani-Kaiowá e relacionada a aspectos espirituais e punitivos.
Ao realizar sua pesquisa sobre as reações e sentimentos de uma mãe Guarani-Kaiowá em relação ao seu filho com paralisia cerebral (PC), Soares (2009) explica que a criança com deficiência possui diferentes representações dentro desta etnia. A autora assinala que para os avós e pais, inicialmente, há uma dificuldade de aceitação da deficiência e que a permissão pelos pais à aproximação e convivência com a criança possibilitou a superação de tal dificuldade. A representação da deficiência pelos familiares, em suas palavras, envolve fatores relacionados à gestação, à relação entre o casal e à própria estruturação familiar. Embora sua pesquisa tenha ocorrido na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de Dourados (Mato Grosso do Sul), onde estão matriculadas diversas crianças das etnias Guarani-Kaiowá e Terena, Soares (2009) ressaltou que a opção por se trabalhar apenas com uma criança Guarani-Kaiowá com paralisia cerebral (PC) se deu pelo fato de somente ela possuir “[...] um diagnóstico fechado nos múltiplos aspectos do seu desenvolvimento.” (Soares, 2009, p. 57).
No trabalho, foram descritos sentimentos como tristeza e culpa por parte da mãe, que relatou estar tomando pílula anticoncepcional à época da gestação e desconhecer que estava grávida, acreditando que este era um dos fatores que levaram seu filho a nascer com a PC. Tais sentimentos somam-se à sensação de normalização pelas “circunstâncias da vida” e também a relação da deficiência com o sobrenatural, relacionando-se com a cultura deste povo.
A relação da deficiência com a cosmovisão indígena é relatada por Araújo (2014) ao investigar o sentido dado ao termo “especial” pelos Karitana, quando descrevem alguns de seus parentes. A responsabilidade de se gerar filhos com deficiência recai sobre a mãe, o que ocasiona grande sofrimento para estas mulheres. Uma outra atribuição dada à existência de Karitana com deficiência relaciona-se ao contato entre indígenas e não indígenas, sendo afirmada, pelos Karitana, a não ocorrência de deficiências quando viviam nas malocas, no mato, e conferindo esse contato a uma fraqueza do corpo das mulheres indígenas. Entretanto, foram relatadas situações similares que não se relacionavam à vivência com os não indígenas.
Outro aspecto mencionado como causa para o nascimento de crianças consideradas especiais ligava-se ao fato de a mulher não ter aprendido a amar o seu marido, sendo o amor entre o casal algo muito importante para esse povo. Os Karitana também observam as especificidades dos corpos de seus parentes “especiais”, atribuindo-lhes qualificativos, de acordo com os relatos de Araújo (2014), como “feios, errados e ruins” (p. 146). Além disso, tal percepção, somada aos rompantes de fúria pelos especiais, os assemelham aos ogros das matas.
Ao buscar analisar as concepções que os Waiwai e os Yanomami têm acerca da deficiência, e como tais concepções impactam na vida das pessoas com deficiência, Machado (2016) explica que tais pessoas ainda encontram-se em situação de vulnerabilidade, principalmente em locais com menor interação com os não indígenas, relacionando esse dado não apenas às “questões culturais correspondentes à fragilidade de sobrevivência das crianças com deficiência, bem como em aspectos sociais, relacionadas aos grupos socialmente excluídos” (p. 92). Como nos relatos anteriores, a existência de uma deficiência para o povo Yanomami pode relacionar-se a questões sobrenaturais, como “um descontentamento dos deuses com seus pais ou uma própria manifestação maligna em forma de criança” (p. 95). Machado (2016) diz que em razão da deficiência não ser considerada pelos Yanomami como doença, não há uma busca por tratamentos para essas pessoas. Ou seja, a deficiência não afeta o povo Yanomani ao ponto de levá-los a buscar uma cura.
Diferente dessa perspectiva, no caso dos Macuxi e dos Wapixana, a afecção pela deficiência promove outras agências e associações. Em relação a esses dois povos, Machado (2016) destaca a busca pelo auxílio na medicina não indígena, embora isso não minimize a angústia e o sofrimento de se ter uma criança com deficiência por parte deles. Em uma das entrevistas realizadas pela autora ainda é descrito que, mesmo recebendo os cuidados básicos, nada é esperado dessas crianças.
Em relação aos Yanomami, Machado (2016) ressalta que as formas como se relacionam com a deficiência aparecem de diversas maneiras. A escolha feita pelo pajé Tukuyari é contrária aos relatos anteriores que associam a deficiência a uma marginalidade. Frente ao seu filho com Síndrome de Down, o pajé demonstrou interesse em transformá-lo em seu sucessor. Quanto aos Waiwai, a autora destaca que, pela proximidade com os não indígenas e, por isso, pela conversão ao cristianismo e valorização dos preceitos cristãos, sua relação com a deficiência sofreu grandes mudanças, levando-os à não marginalização da deficiência e à não observância de abandono dessas crianças.
Embora o foco de sua pesquisa tenha sido a discussão da educação inclusiva em uma escola indígena Tikuna, Rodrigues (2014) traz contribuições importantes sobre a percepção desse povo acerca da deficiência. O autor relata que tanto os Tikuna quanto os Pankararé acreditam que as pessoas com deficiência são aquelas que, devido à sua condição, dependem dos outros para sobreviverem. No caso dos Tikuna, especificamente, o autor observou algumas situações em que as pessoas com deficiência eram tidas por “‘coitadinhas’ ou inúteis” (Rodrigues, 2014, p. 35), concepção que se estendia à escola. A visão que esse povo tem acerca da deficiência também a relaciona ao fato dos pais não seguirem as orientações dadas pelos anciãos, sendo esses nascidos considerados pelos demais familiares como “causa perdida” (p. 35).
Correia (2013) destaca contribuições para compreendermos a percepção da deficiência pelo povo Pankararé. A autora relata a preocupação dos professores e das lideranças mais novas por desconhecerem práticas específicas que possam contribuir para a participação plena desses indígenas na circulação da cultura, incluindo processos de retomada de terras. A participação e utilização das práticas cotidianas traz ao indígena Pankararé com deficiência o sentimento de pertencimento, o que reforça a existência de práticas de convivência entre pessoas com e sem deficiência.
Uma convergência deste estudo em relação aos resultados das pesquisas anteriores se dá por meio da visão dos mais velhos, que acreditam que a deficiência seja “causada” por questões relacionadas à ancestralidade, como a irresponsabilidade ao cuidar da criança ao nascer, a não realização das rezas ou de outras situações cotidianas. A aceitação da deficiência também aparece nos relatos da pesquisadora, principalmente quando relacionada às práticas cotidianas, como os afazeres de casa, sendo considerada, assim, uma diferença inerente àquele indivíduo, e sua aceitação proporciona uma aprendizagem coletiva.
A segunda parte reúne pesquisas que se distinguem por tratarem da interface entre a Educação Escolar Indígena e a Educação Especial.
A Educação Escolar Indígena se configura como um espaço importante para investigar as visões dos povos indígenas sobre a deficiência, pois tanto os saberes e práticas secularmente formalizados sobre as pessoas com deficiência e suas condições de educabilidade nas sociedades hegemônicas, quanto as mais recentes formas de suporte e acessibilidade implementadas nos processos educativos da atualidade muitas vezes são endereçadas às escolas indígenas, mesmo que essas comunidades não possuam nomeações que definam e distingam esse público. Isso faz com que o modelo escolar urbano e os suportes destinados à acessibilidade sejam aplicados às escolas indígenas sem uma compreensão anterior sobre essas diferenças de percepção e de visões.
Segundo Silva (1994), a Educação Escolar Indígena pode ser compreendida, ao longo do tempo, como um dos fatores de luta e resistência dos povos indígenas brasileiros contra uma hegemonia cultural, buscando uma descolonização educacional. Um projeto educacional “[...] tão antigo quanto o estabelecimento dos primeiros agentes coloniais em nosso chão” (p. 43). Pode-se dizer que a Educação Escolar Indígena se encontra assegurada constitucionalmente no Brasil como uma educação diferenciada, bilíngue e intercultural, que valoriza as culturas de cada povo e que apresenta um olhar de reconhecimento em relação ao que se convencionou designar como diversidade.
A necessidade de criação da interface da Educação Especial com a Educação Escolar Indígena também é reforçada no documento final da Conferência Nacional de Educação (CONAE), onde se propõe que as políticas deverão “[...] estimular a interface da Educação Especial na Educação Indígena, assegurando que os recursos, serviços e Atendimento Educacional Especializado (AEE) estejam presentes nos projetos pedagógicos, construídos com base nas diferenças socioculturais desses grupos” (CONAE, 2010, p. 141). O mesmo é percebido no documento final I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena (I CONEEI), que propôs à Educação Especial a criação de programa específico para atender os alunos com deficiência, assegurando a contratação e formação de professores indígenas para esse atendimento, bem como a disponibilização dos recursos necessários ao Atendimento Educacional Especializado.
Contudo, ao investigar sobre a interface da Educação Especial com a Educação Escolar Indígena na Terra Indígena Araribá, em São Paulo, Sá (2015) observou que essa interface ainda se encontra em construção, não ocorrendo efetivamente nas escolas pesquisadas, mesmo com o aumento de matrículas de alunos indígenas com deficiência. Em sua pesquisa, Sá (2015) identificou que os materiais didáticos existentes nas escolas investigadas não se diferem dos materiais disponibilizados às escolas não indígenas, o que indica uma controvérsia em relação às orientações apresentadas nos Referenciais Curriculares da Educação Indígena (Brasil, 1998) e um desrespeito à garantia assegurada na Constituição Federal de 1988. A autora ainda denuncia a negligência do governo do estado em questão (São Paulo), quanto ao não fornecimento de materiais adaptados, levando-se em consideração as especificidades de cada etnia, a falta de investimento financeiro e, também, de ações de formação de professores. Outra informação importante apresentada por Sá (2015) se refere aos dados comparativos das matrículas de alunos indígenas com deficiência em escolas regulares no âmbito nacional e as do estado de São Paulo.
Utilizando os microdados da base do Ministério da Educação (MEC/INEP) entre os anos de 2007 a 2013, a autora pôde observar um crescimento nas matrículas realizadas no estado de São Paulo em relação aos dados do país, sendo uma maior representatividade dessa população em escolas estaduais. Sá (2015) explica que mesmo matriculados em 124 escolas regulares, os alunos indígenas com deficiência não recebiam, até o ano de 2013, Atendimento Educacional Especializado.
Ao realizar o mapeamento dos indígenas com deficiência, Buratto (2010) constatou que muitos recursos e materiais assistivos não se encontravam disponíveis para o atendimento desses estudantes. Dos 23 indígenas com deficiência, 10 possuíam deficiência intelectual, um possuía cegueira; sete foram diagnósticos com visão subnormal; três eram surdos; um apresentava deficiência física; e um deficiência múltipla. Nem todos possuíam Atendimento Educacional Especializado, como no caso da aluna surda, que desistiu da escola por não possuir o auxílio do intérprete de Língua de sinais nas aulas.
Buratto (2010) chama a atenção para o papel dos professores nas escolas indígenas e salienta a importância de sua instrumentalização para trabalhar com estudantes indígenas com deficiência. Nas palavras da autora, se os professores se instrumentalizarem, poderão se tornar agentes multiplicadores não apenas de práticas inclusivas, mas, também, de ações preventivas, uma vez que em seus relatos são citados casos de deficiência decorrentes de sequelas de doenças e alcoolismo, o que justificaria, segundo a autora, a necessidade de se conhecer suas causas.
Em relação aos recursos pedagógicos, é possível salientar que a Educação Escolar Indígena não se desvincula da educação indígena que acontece nas matas e nos terreiros, por meio das práticas comunitárias e dos rituais. Todavia, observamos que essa forma de conceber os processos educativos nem sempre é considerada na implementação das políticas públicas. Quando as salas de recursos3 são implementadas nas escolas indígenas, por exemplo, esses espaços costumam ser formatados do mesmo modo como é feito nas escolas urbanas da região, o que tende a provocar um distanciamento entre os equipamentos de suporte educacional e as demandas dos povos indígenas.
Em relação à interface Educação Escolar Indígena e deficiência no Território Indígena Xakriabá (TIX), há o registro de três trabalhos que abordam essa temática, produzidos na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sendo dois deles realizados por graduandos Xakriabá como Trabalho de Conclusão do Curso de Formação Intercultural de Educadores Indígenas (FIEI). Esse Curso existe desde 2009 e atende uma população significativa dessa etnia.
No primeiro deles, no ano de 2017, Franco, Silva e Regina descreveram o processo de escolarização de indígenas com deficiência em duas escolas no território Xakriabá. Uma questão interessante que os autores trouxeram em seu trabalho dizia respeito à percepção que o povo Xakriabá tinha acerca das deficiências, como lemos a seguir:
Até o ano de 2009, as escolas indígenas tinham um número bem menor de crianças com necessidades educacionais especiais do que nos dias de hoje, pois as questões que esses alunos apresentavam não eram percebidas ou nomeadas como necessidades educacionais especiais ou como deficiência. Os alunos não eram assim chamados e conviviam com os outros sem diferenciações. A acessibilidade para ir até à escola era mais difícil devido à distância, alguns alunos tinham que percorrer até sete quilômetros a pé para chegar à escola.
Hoje, a Secretaria Estadual de Educação quer dar nome, de modo que tudo esteja dividido em cada caixinha pra se pensar em uma política para a Educação Especial. Para nós, indígenas, não existe essa divisão quando se cobra o território e também a saúde e a educação. (Franco, Silva & Regina, 2017, p. 19-39)
Pelo que pode ser observado nas afirmações acima, a questão da acessibilidade na TIX girava em torno do acesso de quaisquer alunos à escola, devido às dificuldades encontradas no próprio espaço geográfico, não sendo vinculada às necessidades especiais ou deficiências dos alunos. Em uma entrevista que os autores (2017) realizaram com uma professora que apresentava um percurso maior de atuação na escola, foi narrado que as crianças com deficiência ou necessidades especiais participavam das atividades escolares e que suas necessidades não eram diferenciadas. Eram como quaisquer outras crianças. Todavia, isso não significava que os corpos fossem vistos ou compreendidos de maneira simétrica por eles. Isso foi observado e descrito por Ferrari (2020) em um segundo trabalho sobre a temática com o povo Xakriabá. Verificou-se, então, a utilização de categorias espontâneas de deficiências, por meio das quais os Xakriabá utilizavam termos como “pessoa com ‘aleijo’” para denominar o que costuma ser nomeado, no contexto urbano, como pessoas com deficiência. Segundo a autora (2020), o emprego da expressão “pessoa com ‘aleijo’” não indica, entretanto, uma “ausência” ou distanciamento do padrão de normalidade, mas o registro de uma diferença. A utilização de categorias espontâneas também foi observada nos trabalhos de Soares (2009) e Rodrigues (2014). A partir das entrevistas realizadas com o povo Xakriabá, Ferrari (2020) argumenta em sua pesquisa que, nesse caso, a relação da deficiência das crianças tem mais conexão com a ciência e espiritualidade do povo do que com a patologização dos corpos, como ocorre no caso dos não-indígenas.
O terceiro trabalho sobre a escolarização dos indígenas com deficiência, realizado pelos próprios Xakriabá, foi realizado por Alckmin (2022). Em sua pesquisa, a autora descreve o processo de escolarização de indígenas com deficiência da etnia Xakriabá, matriculados na escola indígena da Aldeia Sumaré I, e aponta os desafios e possibilidades desse processo, considerando a preconização da educação diferenciada cabida aos povos indígenas.
Por fim, é importante ressaltar que diversas pesquisas têm discutido aspectos relacionados aos indígenas surdos que vivem em diferentes territórios brasileiros, bem como sobre os seus contextos linguísticos. Os trabalhos de Giroletti (2008), Vilhalva (2009), Coelho (2011; 2019), Azevedo (2015), Barretos (2016), Damasceno (2017), Eler (2017) e Godoy (2020) apontam para a existência de línguas de sinais indígenas específicas e para a relação direta dessas línguas com o território, tornando-se língua-território. As pesquisas problematizam a assimetria presente na oferta dos recursos de acessibilidade, considerando que essa oferta tende a focar mais no que é prescrito nas legislações do que naquilo que se configura como real necessidade dos surdos indígenas, como já apontado em relação às salas de recursos.
A partir dos trabalhos citados, pode-se indicar a presença de categorias espontâneas, que evidenciam percepções específicas dos indígenas sobre os corpos com e sem deficiência. Essas percepções se diferem do pensamento hegemônico ocidental e corroboram para a perspectiva de que a construção dos corpos se dá mais pelas suas afecções e afetos do que pelo corpo tomado como uma entidade material fixa. Tendo como referência as contribuições da Teoria Ator-Rede (TAR), pode-se refletir sobre essa construção como a emergência de um corpo performado, como passaremos a abordar.
O corpo performado com e sem deficiência: as contribuições da Teoria Ator-Rede
Para entendermos as interrelações entre humanos e não-humanos, bem como as suas agências e, consequentemente, sobre a emergência de realidades performadas, debruçamo-nos nos preceitos teórico metodológicos da Teoria Ator-Rede (TAR), uma abordagem teórico-metodológica desenvolvida na década de 1980, tendo como seus principais precursores Bruno Latour, Annemarie Mol, John Law e Michel Callon.
A TAR surge como uma alternativa à Sociologia do Social, sendo compreendida como a Sociologia das Associações. Isso porque, sob a ótica da TAR, sociedade é justamente a associação de humanos e não humanos, rompendo com a tradicional ideia de sociedade como interação de humanos exclusivamente. De acordo com a TAR, tanto pessoas quanto coisas podem assumir o papel de actantes (atores), fazendo com que as coisas aconteçam (Coutinho et al., 2014). Sob essa ótica, os actantes não são previamente escolhidos, mas emergem a partir dos rastros deixados por suas agências, isso porque “[...] não há mundo pronto para ser visto, um mundo antes da visão, ou antes, da divisão entre o visível (ou pensável) e o invisível (ou pressuposto) que institui o horizonte de um pensamento” (Viveiros de Castro, 2002, p. 123). Por esse motivo, a TAR traz contribuições importantes para se pensar a produção dos corpos com e sem deficiência, ao explicar que “corpo” pode ser definido “[...] como uma interface que vai ficando mais descritível quando aprende a ser afetado por muitos mais elementos.” (Latour, 2008, p. 39). Ou seja, um corpo vai muito além da constituição material que conhecemos, mas se faz nas associações e afecções com o outro (humano ou coisa). Isso significa que os corpos produzem e são produzidos a partir do vislumbre de diversas realidades, reforçando a ideia de multiplicidade performada. Não plurais, mas múltiplos, como nos diz Mol (2002). Dizer de realidades, nessa perspectiva, é algo complexo. Quanto a isso, Mol (2002) explica que: [...] falar da realidade como múltipla depende de outro conjunto de metáforas. Não as de perspectiva e construção, mas, sim, as de intervenção e performance. Estas sugerem uma realidade que é feita e performada [enacted], e não tanto observada. Em lugar de ser vista por uma diversidade de olhos, mantendo-se intocada no centro, a realidade é manipulada por meio de vários instrumentos, no curso de uma série de diferentes práticas (Mol, 2002, p. 5-6).
Como bem explica Latour (2012), a performance se relaciona diretamente às práticas, emergindo e performando a partir das agências e afecções dos seus atores-rede, fazendo também com que novas realidades surjam. Assim, uma realidade nunca será igual a outra. Mol (2002) utiliza o termo em inglês enact, para descrever as práticas performadas como geradoras de realidades múltiplas. A realidade não preexiste às nossas práticas, mas são as nossas práticas que criam as realidades. Isso pode ser melhor entendido quando a autora (2002) descreve os corpos que fazemos, saindo da dicotomia do “corpo que somos” e “corpo que temos”.
Nessa visão, podemos entender que os corpos (com ou sem deficiência) só podem se definir pelo conjunto de interações (associações) estabelecidas com outras pessoas e com objetos ou coisas (não humano), conforme Moraes (2008), assumindo, assim, uma multiplicidade ontológica performada por essas associações, tornando-se uma construção social, temporal e situada.
Considerando essas marcações, é possível dizer que mesmo o modelo social de deficiência4 sustenta a separação entre corpo e sociedade, perpetuando o olhar ao corpo lesionado talvez de uma forma não tão objetiva como o modelo biomédico, mas de uma maneira velada, camuflada. Isso pode ser melhor compreendido a partir da análise de Diniz (2007), ao explicar que:
O argumento do modelo social era o de que a eliminação das barreiras mostraria a capacidade e a potencialidade produtiva dos deficientes, uma ideia duramente criticada pelas feministas. A sobrevalorização da independência poderia ser um ideal perverso para inúmeros deficientes incapazes de alcançá-la.
Foram as feministas que mostraram o quanto o modelo social era uma teoria desencarnada da lesão, uma fronteira impossível de ser sustentada em qualquer caso, mas especialmente quando se incluíam lesões provocadas por doenças crônicas ou por lesões intelectuais. (Diniz, 2007, p. 4-5)
Por esse motivo, podemos (re)pensar a maneira pela qual compreendemos a deficiência, saindo do foco antropocêntrico, para compreendermos o fazer o corpo com deficiência, o que significa que “a questão central não é do que é o corpo, mas como o corpo é feito” (Moraes & Monteiro, 2010, p. 102). Ou, nas palavras de Latour (2008):
podemos procurar definir o corpo como uma interface que vai ficando mais descritível quando aprende a ser afetado por muito mais elementos. O corpo é, portanto, não a morada provisória de algo superior - uma alma imortal, o universal, o pensamento - mas aquilo que deixa uma trajetória dinâmica através da qual aprendemos a registar e a ser sensíveis àquilo de que é feito o mundo. (Latour, 2008, p. 39)
Como seria isso? Pensemos que todos os corpos podem se fazer deficientes em determinada situação e, em outras, esses mesmos corpos se fazem eficientes, sem quaisquer limitações, extrapolando as perspectivas dicotômicas dos modelos médico e social, e buscando compreender, que sob essa ótica:
o corpo lesionado e o corpo deficiente perdem sua dicotomia sociológica inaugural entre indivíduo e sociedade, natureza e cultura, ao serem compreendidos como significados produzidos dentro de discursos e práticas específicas, dentro de enquadramentos de inteligibilidade que possibilitam a troca de seus sentidos. (Gavério, 2017, p. 111-112)
Nesse sentido, ao realizar uma oficina de experimentação corporal com jovens com deficiência visual, matriculados em uma Escola Especial, Moraes e Monteiro (2010) narram os desafios desses jovens para a representação dos personagens: dificuldades como a repetição das falas sem, contudo, compreender o que se falava ou até mesmo entender as instruções dadas oralmente.
As autoras (2010) utilizaram a situação de uma menina cega congênita que representaria uma bailarina. Ao receber instruções como “rodopiar com leveza” (p. 98) permanecia encenando movimentos não condizentes às orientações. Esse corpo precisaria aprender a ser afetado. O fato de as instruções terem sido proferidas como se faz com pessoas videntes, pode ter colocado a menina em uma situação de deficiência, fazendo-nos refletir sobre a não compreensão das ordens e das falas como fator inerente à deficiência. É preciso pensar, então, além do significado conceitual da deficiência, pautando o significado que esses corpos ainda reproduzem, pois “por mais que a deficiência seja vista como uma terminologia 'politicamente correta', as pessoas deficientes ainda são consideradas corriqueiramente como 'defeituosas', 'problemáticas'”. (Gavério, 2017, p. 111). Nesse sentido, os resultados do trabalho de Moraes e Monteiro (2010), apresentados anteriormente, evidenciam que um mesmo corpo ora ocupa o lugar de “corpo-deficiência”, ora ocupa o de “corpo-sem deficiência”, possibilitando-nos enxergar a situação em que esse corpo se encontra a partir das realidades que são produzidas pelas práticas: situação de deficiência ou não.
Ao se pensar em pessoas em situação de deficiência devemos deslocar nossos olhares do corpo biológico para a construção desse corpo a partir das agências que os atores envolvidos produzem, sejam pessoas, sejam coisas (o que inclui rampas, bengalas, amplificadores sonoros, políticas públicas e o Atendimento Educacional Especializado, por exemplo) e como as interrelações ou associações entre eles acontecem, como afetam e se deixam afetar. São essas associações que mostrarão se um corpo se encontra ou não em situação de deficiência, e não a sua constituição biológica.
As palavras de Gardou (2011) nos fazem refletir acerca da agência dos não humanos na proliferação da rede das pessoas em situação de deficiência:
Se as rampas de acesso, os pictogramas de sinalização, as novas tecnologias sociais (informação, comunicação, serviços on-line), os suportes apropriados e as técnicas especializadas (secretariado, descrição em áudio, interpretação em linguagem gestual, etc.) não eliminam a deficiência, reduzem, pelo menos, as suas ressonâncias. É o princípio de conversão do obstáculo, a acessibilidade na sua acepção mais aberta. (Gardou, 2011, p. 19-20)
Assim, a deficiência não se limita ao corpo, é performada, podendo ser biológica, mas também estrutural, atitudinal e comunicacional, convocando outros seres à sua produção. Isso nos permite debater o conceito fixo de pessoa com deficiência e nos debruçarmos na “performatividade” do conceito de pessoa em situação de deficiência. Latour (2008) explica que um corpo, ao aprender a ser afetado, é “movido, posto em movimento por outras entidades, humanas ou não humanas” (p. 39). Com isso, os corpos podem assumir uma multiplicidade de formas de se ter a deficiência, de acordo com a afecção que possuem. Ou seja, os corpos acontecem na prática, em sua movimentação com outros actantes, humanos e não humanos. Viveiros de Castro (1996) corrobora essa perspectiva de Latour, ao afirmar que:
A diferença dos corpos só é apreensível de um ponto de vista exterior, para outrem, uma vez que, para si mesmo, cada tipo de ser tem a mesma forma (a forma genérica do humano): os corpos são o modo pelo qual a alteridade é apreendida como tal.
O que estou chamando de “corpo”, portanto, não é sinônimo de fisiologia distintiva ou de morfologia fixa; é um conjunto de afecções ou modos de ser que constituem um habitus. Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade substancial dos organismos, há um plano intermediário que é o corpo como feixe de afecções e capacidades, e que é a origem das perspectivas. (Viveiros de Castro, 1996, p. 127-128)
Evidência disto, trazida também por Moraes e Monteiro (2010), relaciona-se às afirmações de dois jovens com deficiência visual – um cego e outro com baixa visão, denominados pelas autoras de Arlequim e Colombina, respectivamente. Na visão de Colombina, o cego era aquele que precisava ser guiado, sendo sempre dependente do auxílio de outra pessoa. Arlequim, no entanto, acredita na autonomia do cego, citando o exemplo da utilização de um guizo em um jogo de queimada. Enquanto Colombina defende a ideia da dependência, alegando que o cego só consegue jogar queimada se houver o auxílio de um vidente, seja para bater palmas, seja para chamá-lo pelo nome, Arlequim defende a ideia de que cego joga queimada assim como as demais pessoas, porém utilizando recursos não humanos (Latour, 2012), como o guizo, o que reforça sua autonomia. Arlequim e Colombina, embora tenham deficiência visual, possuem visões divergentes quanto ao fato de ser cego, principalmente quando trazem à discussão a existência dos não humanos nas atividades desenvolvidas no jogo de queimada.
A associação da prática com e sem o guiso durante a realização do jogo cria realidades de autonomia e/ou dependência, respectivamente, o que também contribui para a percepção do ser cego como aquele capaz de participar de uma atividade autonomamente, assim como um vidente participaria, ou como aquele que só conseguiria participar da atividade se um vidente o guiasse. Essa multiplicidade performada, de acordo com Moraes e Monteiro (2010), influencia diretamente as relações entre as pessoas, independente de se ter, ou não, uma deficiência.
Deste modo, a deficiência não pode ser vista, como destaca Brogna (2009), como uma fotografia, estática, fixa, sem considerar os múltiplos atores que se associam para a sua construção. Há de se considerar as dimensões política, cultural, histórica, normativa, dentre outras, para a entendermos na perspectiva sociológica, compreendendo que “o social é muito mais do que a soma dos atores, é a rede complexa de relações, papéis, conjuntos, trocas, expectativas, imposições, preconceitos, lutas e resistências, e a forma como é configurado e reconfigurado ao longo do tempo” (tradução livre, p. 16).
Na perspectiva indígena, os corpos e a aprendizagem se constroem mutuamente, uma vez que “se aprende vivendo, experimentando e que o corpo, suas sensações e seus movimentos são instrumentos importantes do aprendizado e da expressão do conhecimento” (Silva, 2002, p. 42). Não são inertes e se performam de acordo com diversas cosmologias e artefatos culturais indígenas, híbridos em suas relações sociomateriais, dando sentido a se pensar no híbrido corpo-território (Correa, 2018).
Tendo como referência esses apontamentos, analisaremos neste artigo uma situação que ocorreu durante uma das imersões de pesquisa realizadas na Terra Indígena Xakriabá (TIX) entre os anos de 2017 e 2019, no contexto de uma pesquisa de doutorado defendida no ano de 2020 (Ferrari, 2020). Para realizar a investigação, foram feitas reuniões com lideranças indígenas, nas quais se apresentou a proposta de pesquisa e para quem foram solicitadas, posteriormente, autorizações formais. Após concordância das lideranças, o projeto de pesquisa foi apresentado à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e ao Comissão Nacional de Pesquisa (CONEP), sendo autorizado por ambas.
Do ponto de vista epistemológico, o estudo utilizou os princípios metodológicos de uma pesquisa-ação, entendida como pesquisa “de caráter social e formativo, associada a uma estratégia de intervenção/formação e que evolui durante o processo, atendendo à dinâmica do contexto social em que se insere” (Franco, 2018, p. 55).
Para registrar o que se aprendia no campo, foram utilizados cadernos para “descrever, inscrever e narrar” (Latour, 2012, p. 199) as vivências na TIX. Magnani (2002, p. 17) explica que “o método etnográfico não se confunde nem se reduz a uma técnica; pode usar ou servir-se de várias, conforme as circunstâncias de cada pesquisa; ele é antes um modo de acercamento e apreensão do que um conjunto de procedimentos.” A escolha pela observação participante se deu a partir do entendimento de que se tratava da estratégia mais pertinente para a coleta de dados no contexto desta pesquisa, uma vez que “o pesquisador ingressa no grupo estudado como se fosse membro, e procura realizar as atividades que são desempenhadas pelo grupo, compartilhando ao máximo a vida social daqueles que estão sendo observados” (Tureta & Alcadipani, 2011, p. 213).
Latour (2012) orienta que após a identificação dos actantes (humanos e não humanos) e de todas as ações envolvidas por eles, o pesquisador coloque em teste a sua pesquisa por meio da escrita. É por meio dela que descreveremos as redes, os rastros deixados pelos actantes, o que requer do pesquisador “tanta habilidade e artifício quanto pintar uma paisagem ou provocar uma complicada reação bioquímica” (Latour, 2012, p. 199).
Além da observação participante, foram realizadas entrevistas e conversas, sem seguir uma estrutura com perguntas previamente organizadas, mas procurando partir das dúvidas e demandas que surgiam durante as observações e participações. Assim, as conversas emergiam e eram registradas em áudio.
A partir dessa proposição metodológica, os dados foram selecionados, descritos e analisados com base na agência dos humanos e não humanos, observando suas associações e movimentos, pautados na Teoria Ator Rede, de Latour (2012). Isso permitiu uma análise da construção dos corpos durante a circulação do conhecimento, perfazendo-se a multiplicidade de se estar em situação de deficiência e verificando como as realidades performam-se por meio das práticas realizadas.
Os corpos com deficiência nas comunidades indígenas, como abordado acima, bem como nos relatos dos Xakriabá durante a pesquisa de campo, sugerem uma construção da deficiência baseada muito mais no coletivo do que na individualidade. Como indicado, os corpos também são construídos nas agências de diversos atores, como as práticas comunitárias, na interação dos indígenas com os não indígenas, e com a espiritualidade pertencente a cada cosmovisão. Os trabalhos indicam, ainda, que a relação de parentesco associada à prática do cuidado é intrínseca a essa construção.
A construção coletiva dos corpos, ou melhor, das corporalidades, faz emergir realidades performadas, como veremos a seguir, quando Etiké5, um jovem de dezenove anos, diagnosticado com deficiência intelectual moderada e matriculado no quinto ano do Ensino Fundamental regular se performa enquanto ocupa a função de ser guia em uma atividade simulada sobre as deficiências, como apresentamos a seguir.
“Aqui sou guia, lá sou guiado”: a afecção de uma cegueira simulada e o surgimento de um corpo sem deficiência
Muito mais do que a reprodução de uma atitude observada, Etiké compreendeu que, como guia, deveria ser os olhos do professor que ele guiava, protegendo-o dos obstáculos. E isso não é prova da sua aprendizagem? (Notas do caderno de campo, 2018)
Na primeira semana de agosto de 2018, foi ministrada uma oficina sobre Educação Inclusiva e o Bem Viver no TIX como uma proposta voltada para a discussão da inclusão nas escolas indígenas. A oficina foi combinada pela pesquisadora com a supervisão e direção da Escola Estadual Indígena Xukurank (que significa boa esperança, em português).
Embora a perspectiva do Bem Viver6 venha denunciar e discutir os padrões de desenvolvimento econômico, a noção foi retomada na oficina a partir de algumas recomendações trazidas por Acosta (2016), ao dizer que “o Bem Viver enquanto ideia em construção, livre de preconceitos, abre portas para formular alternativas de vida. [...] A construção do Bem Viver, como parte de processos profundamente democráticos, pode ser útil para encontrar saídas aos impasses da humanidade” (Acosta, 2016, p. 33-34). Considerando essas reflexões, o conceito foi importante para estabelecer algumas pontes com o tema que seria trabalhado na formação.
Dialogando com pessoas que atuavam na escola, foi possível observar um grupo de crianças pequenas saindo da sala de aula com o seu professor e cada uma carregava sua cadeira. O professor as guiava para se sentarem próximas a uma árvore. Essa observação, somada a demandas apresentadas pelo cacique, fizeram-nos refletir sobre uma possível contraproposta, baseada em uma formação de professores e na confecção de materiais adaptados que não seguissem necessariamente o que prescrevem as agências administrativas oficiais. A oficina seria, então, para que produzíssemos coletivamente os materiais adaptados para as escolas, utilizando os recursos disponíveis na TIX.
A oficina para a formação de professores para a educação inclusiva realizada na Escola Estadual Indígena Xukurank, em 2018, contou com a participação não somente dos professores regentes e de apoio, mas das supervisoras pedagógicas e de Etiké. A escola indígena possuía uma articulação diferenciada, que proporcionava a circulação da comunidade nas atividades que ali aconteciam independentemente de fazerem parte ou não do corpo docente e pedagógico da instituição. A presença não só de Etiké, mas, também, de seus irmãos Encuntantong e Moropõy, em atividades que se diferiam das aulas regulares era algo comum, pois moravam perto da escola. Os três tinham diagnóstico de deficiência intelectual moderada (CID 71).
Para o segundo dia de formação, foi prevista uma atividade prática que simulava a deficiência visual e o uso de uma fita na boca, para indicar ausência de linguagem verbal. O objetivo da prática era levar os participantes a refletirem sobre a importância de se conhecer as necessidades do aluno, que deve prevalecer independentemente da categoria indicada em um laudo médico.
No dia anterior, foi solicitado aos participantes que levassem no encontro algum material que pudesse ser utilizado para vendar os olhos: um lenço, uma bandana de cabelo ou fronha de travesseiro. No momento da atividade, os participantes foram divididos em dois grupos: o primeiro teve seus olhos vendados com os materiais utilizados (a grande maioria levou lenço de cabelo e três utilizaram blusas de frio enroladas); o segundo teve a fala interrompida com a utilização de uma fita adesiva sobre a boca, o que os impedia de se comunicarem verbalmente. Os participantes que tivessem a fita adesiva sobre a boca seriam os guias dos participantes que tivessem os olhos vendados, o que foi revelado somente após a divisão dos grupos.
Essa primeira etapa se deu da seguinte maneira: pedimos para que os participantes se dividissem em dois grupos, sem relatar inicialmente o objetivo. Quando os dois grupos já estavam definidos, foi dada a instrução de que um deles, nomeado como Grupo 1 seria o grupo que ficaria vendado; e o Grupo 2 seria aquele que teria a fita adesiva colocada na boca. Durante a divisão dos grupos, Etiké permaneceu sentado sem se direcionar a um dos dois, mesmo após as investidas da pesquisadora, conforme o registro abaixo:
Enquanto os participantes se movimentavam pela sala, direcionando-se ao grupo do qual faria parte, Etiké apenas olhava e ria, mas não demonstrou inclinação em participar de algum dos grupos. Foi então que me dirigi a ele e começamos uma conversa (eu, com a linguagem verbal; ele, com a linguagem não verbal):
- Ôh Etiké, vamos participar com a gente? (pesquisadora)
Etiké sorri e acena com a cabeça, indicando que participaria]
- Você quer que eu amarre o pano no seu olho ou quer que eu coloque o durex na sua boca? (pesquisadora) [mostrando a Etiké o lenço e a fita adesiva]. Etiké sinaliza “não” com cabeça, informando seu desejo em não os usar. Deixei-o livre para se juntar a qualquer um dos grupos que escolhesse. Etiké levantou-se e sentou-se perto de Pikon (Notas do caderno de campo e registro em vídeo, 2018).
A escolha em não utilizar um dos instrumentos apresentados a Etiké não o impossibilitou de participar da atividade com os professores. Durante o tempo de organização da atividade em sala de aula, ele observava todos os movimentos: a venda nos olhos dos participantes e a dificuldade de retornarem vendados e sozinhos às carteiras, caminhando mais devagar e tateando o local por onde passavam. Nesse momento, já era possível observar as primeiras dificuldades encontradas pelos participantes ao terem seus corpos afetados pela simulação e, consequentemente, por se encontrarem em situação de deficiência.
Quando todos os participantes já estavam devidamente preparados, pedimos que cada pessoa com uma fita adesiva na boca se juntasse a uma pessoa com os olhos vendados e assumisse o papel de guia para que saíssemos para o pátio da escola. Como cada um escolheu espontaneamente o grupo do qual participaria, não houve uma divisão exata do número de membros de cada coletivo. Por esse motivo, o grupo de pessoas vendadas teve um número maior de membros do que o de pessoas “mudas”, impactando diretamente na atuação dos guias, uma vez que alguns tiveram a responsabilidade de guiar duas ou mais pessoas, como no caso de uma das professoras, Pikon, que guiou, inicialmente, três pessoas. Etiké juntou-se ao grupo da professora e, a seu modo, sem receber quaisquer orientações para isso, auxiliou-a a guiar os que estavam vendados.
Etiké segura as pessoas pelo braço, atitude diferente da utilizada pela professora, mas observada em outras duplas ou trios. Etiké se atentava a olhar para o chão, como se buscasse identificar algum obstáculo. Isso, entretanto, só foi compreendido posteriormente, quando Etiké assumiu o lugar de guia, como será descrito na sequência.
A realização desta oficina teve como objetivo observar a maneira como os participantes lidavam com a cegueira (mesmo que simulada), tendo como outro actante nessa rede: a ausência de linguagem verbal. Como a oficina não foi de Orientação e Mobilidade (OM), os participantes não foram previamente orientados sobre as técnicas de guia para pessoas com deficiência visual. Destacamos, entretanto, que tais orientações foram dadas após a realização da atividade, ao retornarmos à sala e iniciarmos as discussões.
Enquanto os grupos saíam da sala e começavam a circular pelo pátio da escola, havia acompanhamento e eram dadas instruções sobre os limites que seriam utilizados para o percurso, dando liberdade para que cada um explorasse espaços diferentes no pátio, porém sem se afastarem demasiadamente do grupo. Algumas pessoas que estavam com os olhos vendados, mesmo conhecendo os seus guias (embora não pudessem saber quem eram, porque tinham a boca vendada pela fita adesiva), demonstravam certa insegurança durante o processo de circulação, ao colocarem o braço à frente do corpo ou tentarem tatear os espaços, buscando se localizarem na caminhada.
O percurso que faríamos consistia em sair pela porta lateral da sala da Associação, anexa à escola, atravessar o portão de tela chegando ao fundo da escola, próximo à entrada da cozinha. Seguiríamos contornando a lateral da frente da escola até o centro do pátio próximo do acesso ao prédio, onde ficam a diretoria e a secretaria, e retornaríamos à sala da Associação. À medida que avançavam, havia interação entre a pesquisadora e os participantes, como transcrito abaixo:
- Isso! Vão por aqui [apontando com a mão o caminho que eles deveriam percorrer]. Gente, onde vocês acham que nós estamos? Descrevam o lugar onde vocês acreditam que estejam. Alguém pode fazer isso? (pesquisadora)
- Eu acho que nós estamos saindo quase na estrada [que passa em frente à escola] já. (Professor Amba, um dos que estavam com os olhos vendados).
Na estrada? Será que estamos na estrada? (pesquisadora) (Notas do caderno de campo e registro em vídeo, 2018).
As perguntas só poderiam ser respondidas pelos que estavam vendados, já que os demais estavam impedidos de falar. Assim, os cegos eram a voz dos “mudos” e estes eram os olhos dos primeiros. Por não saberem por qual caminho seguiriam, era compreensível a confusão gerada quanto à localização dos participantes.
Seguimos pelo pátio da escola sendo observados pelas crianças e pelos professores que não participaram da atividade, pois estavam em sala de aula. Os participantes vendados exploravam a área com seus corpos, tateando com os pés o caminho percorrido e se divertindo com a situação de não enxergarem. Como nos ensina Latour (2008), podemos depreender uma permissão de que seus corpos fossem afetados por onde passavam. O percurso foi marcado por muitas risadas por parte de Etiké e dos outros participantes. Normalmente, Etiké era um rapaz mais tímido, quase não interagia com pessoas desconhecidas. Essa característica é marcante do povo Xakriabá, pois costumam se colocar de modo mais reservado.
Pikon foi a última a sair da sala da Associação com seus três guiados e com Etiké, seu auxiliar. Seus três guiados se apoiavam no seu ombro. Etiké a auxiliava, segurando um dos seus guiados, tomando o cuidado de observar o caminho pelo qual seguiam.
Exploramos o pátio da escola por aproximadamente 10 minutos. As duplas ou trios subiam as passarelas de cimento, alguns andavam arrastando os pés como se tentassem identificar as irregularidades do chão de terra, outros se divertiam tentando descobrir quem lhe guiava, passando a mão nos cabelos ou no rosto do seu guia.
Aos poucos, todos começavam a retornar à sala da Associação. Pikon, contudo, levou seus guiados e seu auxiliar até uma árvore que se localizava na divisa da escola e da cerca da Associação. Ao chegar à árvore, ela puxou um galho mais baixo e levou as mãos de seus guiados às folhas para que as sentissem. Etiké observava todos os atos de Pikon. Após tatearem os espaços, Pikon pegou as mãos dos membros do seu grupo e as colocou sobre seu ombro. Depois, direcionou Etiké ao braço de um dos guiados, o mesmo que ele acompanhava desde o início da atividade. E assim iniciou o retorno à sala. Etiké não somente era afetado pela atividade, mas também a afetava com a sua participação, contribuindo para a emergência do que podemos ver, posteriormente, como uma realidade performada.
Pikon parou em frente à cerca fronteiriça da escola e da Associação e começou a passar um por um dos seus guiados pelo portão. Etiké a auxiliou durante essa travessia. Após esse movimento, Etiké voltou a segurar o braço de seu guiado e a observar as atitudes de Pikon, porém sem auxiliá-la. Nesse momento, a pesquisadora interage com Etiké:
- Pode trazer ele pra sala, Etiké! (pesquisadora).
[Etiké olha e sorri, caminhando em direção a sala]
- Isso! Pode trazer. Cuidado para ele [professor que simulava estar cego] não cair. Cuidado aqui no chão, óh [apontando para o passeio de cimento] ajuda pra ele não cair. (pesquisadora) (Notas do caderno de campo e registro em vídeo, 2018)
Ao performar-se enquanto guia, Etiké demonstrou atentar-se ainda mais, de modo a proteger seu guiado. Ao chegarem ao passeio de cimento, logo após a pesquisadora dizer para Etiké ter cuidado para que seu guiado não se machucasse, ele o posiciona mais próximo do passeio, abaixa-se e toca a perna esquerda de seu guiado, auxiliando-o a subir o degrau. Como já observado, ele demonstrava certa preocupação com quem guiava, ao olhar para o chão diversas vezes ao longo do percurso realizado, assim como Pikon. Entretanto, quando se tornou o guia principal, responsável pela segurança do seu guiado e se viu frente a um obstáculo (o passeio), Etiké se viu diante de algo talvez inesperado e precisou desenvolver sua estratégia. Etiké performa-se, então, não pelo interesse iminente em ser o “líder”, mas pela necessidade coletiva, situada, de guiar alguém!
Fremlim (2011) destaca que os imprevistos constroem as corporalidades, uma vez que “receios, desconhecimentos e situações perigosas são percebidos como algo para aprender ou algo a partir do qual se aprendem coisas” (p. 66). Logo, corpos não são apenas construídos, mas também aprendidos. Deste modo, Etiké teve seu corpo construído pelo processo e aprendeu a ser esse novo corpo frente ao imprevisto.
Quanto à ligação performance e aprendizagem, Melo (2011, p. 181) explica que “[...] para aprender, precisamos da materialidade de um corpo que se afeta, que é colocado em ação por outras entidades (humanas e não humanas), tornando-se sensível ao que está ao seu redor.” Ou seja, são nas nossas afecções que aprendemos e fazemos circular essa aprendizagem.
Após o “guiado” subir no passeio e chegar até à porta da sala, Etiké novamente se abaixa e refaz o movimento anterior, auxiliando-o a transpassar o degrau existente na entrada. Desta vez, Etiké age por si só, sem observar algum movimento prévio de Pikon, pensando por meio do corpo (Fremlin, 2011).
Ao chegarem na sala, Etiké guia o seu parceiro até a carteira na qual ele estava sentado inicialmente e fica de pé ao seu lado, esperando Pikon, que chega em seguida com os outros dois participantes. A preocupação demonstrada por Etiké em manter o professor que ele guiava em segurança constitui não somente a formação da sua corporalidade como guia, mas, também, a “entrada numa zona moral que permeia aquela corporalidade”, como discute Fremlin. (2011, p. 55)
A ausência de visão e de fala, mesmo que simuladas, permitiram a construção de novos corpos em nossos participantes. Etiké, o aluno considerado especial, que possui um professor de apoio para, juntamente com o professor regente, contribuir para seu desenvolvimento em sala de aula, agora passa a ser o guia do professor de apoio, auxiliando-o em sua caminhada na escola. Etiké deixa o posto daquele que é guiado e assume o de guia a partir da sua afecção pela cegueira simulada e pelo cuidado com quem ele guiava.
Pode-se dizer que o fato de Etiké não estar nem vendado, nem impedido de falar pela fita adesiva, o colocou no lugar de guia, que ali representa uma posição de poder em detrimento dos outros - o que pode ter contribuído para a construção do seu corpo sem deficiência. Porém, é a parentela, o ser parte da comunidade, que permite a sua participação na atividade e, consequentemente, sua circulação como guia.
Considerações Finais
A partir da compreensão dos preceitos epistemológicos da Teoria Ator-Rede foi possível percebermos a construção dos corpos sem deficiência a partir da coletividade, nas práticas, e não na individualidade, como tende a ocorrer mais frequentemente nas perspectivas ocidentais, sendo essa produção de corpos por meio da interlocução de humanos e coisas, necessário para “[...] entender corpos e seus movimentos que não se limite à noção de ‘deficiência’” (Fremlin, 2011, p. 5).
Quando pensamos no corpo formado pelo coletivo e não individualmente, podemos contribuir para a construção de corpo sem deficiência, transformando-o em membro essencial para que esse novo corpo (o coletivo) funcione. Etiké, ao se tornar Etiké-guia, performou-se enquanto corpo-coletivo, engajado no processo de ser “os olhos” de alguém que outrora fora o seu professor de apoio em sala de aula, enquanto o seu corpo ocupava uma situação de deficiência a partir do híbrido Etiké-laudo médico.
Ao se performar como guia de um dos professores participantes, a simulação da cegueira afetou tanto o corpo do professor, o inabilitando a caminhar sozinho pelos espaços da escola, quanto o corpo de Etiké, levando-o a assumir o lugar daquele que promove o pertencimento ao espaço escolar.
É possível compreender que o impedimento ao exercício do que é proposto não se limita ao corpo, mas em como esse corpo é afetado por essa atividade. Ou ainda: “[...] que os corpos se constituem como deficientes e não deficientes em momentos de sobreposição de relações de saber/poder” (Gavério, 2017, p. 111).
A interface Educação Especial e Educação Escolar Indígena é uma demanda dos povos indígenas, porém não como reprodução do que ocorre nas escolas urbanas, mas como devendo estar adaptada às múltiplas realidades existentes. Por meio da atividade descrita acima, as performances dos corpos nas práticas comunitárias, articuladas à Educação Escolar Indígena, contribuem diretamente para o processo de construção dos corpos sem deficiência, uma vez que o participante que possuía o diagnóstico de uma deficiência integrou a atividade de modo similar aos que não possuíam uma deficiência, levando-nos a pensar na urgência da descolonização dos corpos.
Performance e parentela se articulam, nesse sentido, evidenciando as especificidades e diversidade da percepção dos povos indígenas em relação ao que se convencionou denominar deficiência, e demonstrando um contraponto importante para a implementação das políticas públicas, em geral centradas na lógica do individual, o que se distancia das dinâmicas coletivas indígenas. A deficiência se torna, assim, um tema a ser interrogado e problematizado no contexto indígena, considerando a interface das terras indígenas com o meio urbano, e as suas particularidades, que sobrevivem apesar do constante ataque das sociedades hegemônicas.