Dança das Rainhas Mercedes Baptista e Josy Brasil: Marcas do racismo e do capacitismo na Dança Afrobrasileira

Seção « Experiências de práticas profissionais e desde os ativismos: perspectivas críticas »

  • Danza de las Reinas Mercedes Baptista y Josy Brasil: Marcas de racismo y capacitismo en la danza afrobrasileña

DOI : 10.56078/cfla_discapacidad.179

Traduction(s) :
La danse des reines Mercedes Baptista et Josy Brasil : marques de racisme et de capacitisme dans la danse afro-brésilienne

Résumés

O presente artigo visa analisar a relação entre Dança Afrobrasileira e deficiência, a partir da proposta artístico-educativa “Dança de Rainhas: dança afro e deficiência”, promovida, em 2019, na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia. Este acontecimento promoveu modos de repensar processos artístico-educativos que colaborem para novas perspectivas no campo da Dança, destituindo lógicas excludentes e opressoras em relação às pessoas com deficiência, em prol e na construção de danças que neguem a supremacia da verticalidade e virtuose presentes em outras de concepção eurocentrada. Tais danças infringem, historicamente, opressões também à comunidade negra, que tende a interiorizar e adaptar às suas concepções artísticas, modos de organização que fogem àqueles próprios da cultura africana, aqui, reelaborados. Assim, chamamos atenção para a exclusão da pessoa negra com deficiência na construção de danças brasileiras afrorreferenciadas. Elegemos Mercedes Baptista e Josy Brasil, mulheres negras, de inegável representatividade, que experienciaram em seus corpos e trajetórias artísticas, respectivamente, a violência do racismo e do capacitismo. Os resultados da pesquisa reconhecem as incoerências que nós, docentes e artistas, historicamente cometemos, tendo como pautas o modelo de danças afetadas pelo patriarcado branco, hétero, cis e bípede, que desconhece a riqueza e beleza da diversidade.

Este artículo tiene como objetivo analizar la relación entre la danza afrobrasileña y la discapacidad, a partir de la propuesta artístico-educativa "Danza de las Reinas: Afrodanza y discapacidad", promovida en 2019 en la Escuela de Danza de la Universidad Federal de Bahía. Este evento promovió formas de repensar ciertos procesos artístico-educativos que contribuyen a nuevas perspectivas en el campo de la danza, eliminando lógicas excluyentes y opresivas en relación a las personas con discapacidad y favoreciendo la construcción de danzas que nieguen la supremacía de la verticalidad y el virtuosismo presentes en otras danzas eurocéntricas. Históricamente, tales danzas también han infringido la opresión de la comunidad negra, que tiende a interiorizar y adaptar a sus propias concepciones artísticas modos de organización diferentes de los de la cultura africana, que aquí son reelaborados. Por lo tanto, destacamos la exclusión de las personas negras con discapacidad en la construcción de las danzas brasileñas afro-referenciadas. Elegimos a Mercedes Baptista y Josy Brasil, mujeres negras de innegable representatividad, que experimentaron la violencia del racismo y del capacitismo en sus cuerpos y trayectorias artísticas, respectivamente. Los resultados de la investigación reconocen las incoherencias que históricamente hemos cometido como profesoras y artistas, tomando como guía el modelo de danzas afectadas por el patriarcado blanco, hetero, cis y bípede, que ignora la riqueza y la belleza de la diversidad.

Plan

Texte

Introdução

O presente artigo visa analisar a relação entre Dança Afrobrasileira1 e deficiência, a partir da proposta artístico-educativa “Oficina Dança de Rainhas: dança afro e deficiência”, promovida, em 2019, pela Atividade Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS)2 Acessibilidade em Trânsito Poético, vinculada à Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sob coordenação das docentes Edu Oliveira, Cecilia Accioly e Maria Beatriz do Carmo.

A referida oficina, com mediação da professora Marilza Oliveira, e ministrada pelas dançarinas Josy Brasil e Graziela Santos, é rica para análise interseccional dos capacitismos (Mello, 2019) sofridos pela bailarina por conta de marcadores de raça e deficiência aqui proposta por visibilizar a trajetória de Josimare de Cristo Reis, conhecida como Josy Brasil, uma dançarina negra com deficiência.

Inspirados pela perspectiva descolonial de Walter Mignolo (2008, p. 288), em sua proposta de “desobediência epistêmica”, e nas discussões de Robert McRuer (2006) a respeito da normatividade de corpos sem deficiência como aqueles funcionais, capazes, ‘normais’; tomamos o conceito de “bipedia compulsória” (Carmo, 2020), criado no contexto da Dança por Edu Oliveira, para refletimos sobre como a corporalidade de Josi coloca em xeque os padrões que foram se fixando no contexto da Dança Afrobrasileira, assim como os padrões excludentes fixados pela dança clássica e moderna. Inicialmente, então, será apresentado o contexto histórico das mudanças ocorridas nessa instituição de ensino que estimulam a produção deste artigo. Em seguida, através de levantamento bibliográfico, será abordada a criação e desdobramentos da Dança Afrobrasileira, traçando uma trajetória desde a sua precursora, a coreógrafa e dançarina Mercedes Baptista até a experiência da dançarina Josy Brasil, primeira mulher negra com deficiência a vencer um concurso para ser rainha de bloco afro, no carnaval de Salvador, que concedeu entrevista para a produção dessa escrita.

A Escola de Dança da UFBA é considerada referência no seu campo de conhecimento no Brasil, e reconhecida por seu pioneirismo e caráter inovador na formação de pessoas artistas, professoras e pesquisadoras qualificadas, que muito tem contribuído para a produção do saber em Dança, desde sua fundação, em 1956.

Ao completar sessenta anos, em 2016, essa instituição de ensino passou por mais um momento importante de mudanças na sua estrutura, entre elas: a reavaliação do currículo para os cursos da graduação; implantação do curso de Licenciatura de Educação à Distância (EAD) e, também, uma série de concursos para seleção de docentes efetivas. Naquele certame, foram aprovadas a professora Marilza Oliveira e o professor Edu Oliveira. Respectivamente, a primeira docente negra a atuar na disciplina, recém implantada, referente aos Estudos do Corpo com ênfase em Danças Populares, Indígenas e Afro-Brasileiras e o primeiro professor cadeirante de uma faculdade de Dança, no Brasil.

Se por um lado, a presença dessas docentes em espaços de construção de saber de uma tradicional instituição de ensino corresponde às mudanças paradigmáticas em curso, por outro lado, o tempo que isso demorou a acontecer também revela o atraso com que essas questões são reconhecidas. Sobretudo, quando, durante anos, a Escola de Dança da UFBA, negou o compartilhamento de saberes concernentes aos povos originários e população negra, historicamente excluídos, bem como a entrada de indígenas, pessoas negras e com deficiência em seu quadro docente. O campo da Dança ainda demonstra dificuldade em incorporar – verdadeiramente – experiências que não estejam enquadradas nos cânones de uma dança clássica ou moderna, forjadas pelo corpo branco, cisgênero e sem deficiência que ocupa, majoritariamente, os espaços de formação, criação, curadoria, crítica e produção nessa área.

De maneira geral, no ambiente da Dança, parece que a participação de artistas com deficiência ainda fica restrita a determinados espaços e eventos que se entendem como “inclusivos”, limitando a sua produção a um único discurso e ao tema da deficiência. Entretanto, os ambientes da dança negra, contrários aos padrões eurocentrados que se estabeleceu, em Salvador, como Dança Afrobrasileira, também mantém lógicas excludentes e opressoras em relação às pessoas com deficiência na construção de uma dança pautada na “capacidade corporal compulsória” (McRuer, 2006; Moreira et al., 2022). A supremacia da verticalidade e virtuose presentes em outras danças infringem, historicamente, opressões também ao povo negro com e sem deficiência.

No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade de negação. É um conhecimento em terceira pessoa. Em torno do corpo reina uma atmosfera densa de incertezas (Fanon, 2008, p. 104).

Dificuldades estas, que acabam, muitas vezes, fazendo com que as pessoas negras tendam a interiorizar e adaptar, às suas concepções artísticas, modos de organização que fogem àqueles próprios da cultura africana, aqui, reelaborados. Nesse sentido, é notória a exclusão da pessoa negra com deficiência na construção de uma dança brasileira afrorreferenciada, pela impossibilidade de sua participação diante da maneira como essa dança se desenvolveu e permanece tanto nos espaços artísticos, quanto pedagógicos. Se, por uma perspectiva histórica, lutamos sempre por reconhecimento, visibilidade, respeito, inclusão e não violência, de que maneira a Dança Afrobrasileira poderia colaborar na escrita de novas narrativas da história das pessoas negras com deficiência?

No caso desta dança, percebemos que na sua concepção modernista, também foi fortemente influenciada a partir da universalização e predominância da pessoa branca como parte de uma construção ideológica, colonial e racialista que fez com que se colocasse como modelo de narrativas, se percebendo como definição de normalidade. No entanto, não se privaram de adotar elementos específicos da cultura negra, usufruindo de suas riquezas, tomando-as para si, mas desprezando quem a produziu.

Em seu artigo “Dança Afro: uma dança moderna brasileira”, Mariana Monteiro (2011) explica que com o crescimento e estabelecimento da indústria cultural de massa no país aparecem, no cenário cultural, novas modalidades de dança afro. Fora das festas populares e dos rituais religiosos, surge como uma dança de palco, conectada com a produção radiofônica, com o teatro musical, com o cinema, entrecruzando cultura popular, erudita e de massa. Para fomentar uma temática exclusivamente brasileira na produção artística, torna-se necessário instituir sistemas de tradução e releitura das práticas populares presentes em festas populares, religiosas e profanas, e em terreiros de candomblé. “A aparição da dança afro, inventada e praticada sob a liderança da artista negra Mercedes Baptista (1921-2014), na década de 50, parece decorrer desse processo” (Monteiro, 2011, p. 5).

Investindo no fomento à valorização da arte brasileira, no ano de 1939, o ministro Capanema convidou Eros Volúsia (1914-2004), bailarina branca, para assumir a direção do curso de ballet do Serviço Nacional do Teatro – SNT, órgão público criado em 21 de dezembro de 1937, subordinado ao Ministério da Educação e de Saúde Pública para incentivar e difundir a cultura nacional. Em 1945 Mercedes Baptista é aceita no curso dirigido por Eros Volúsia e com ela tem suas primeiras aulas de balé clássico e dança folclórica.

Da escola do SNT, Mercedes reclama por ter sofrido discriminação da parte de Eros Volúsia e de ter sido pouco valorizada. Foram analisadas fotos em que Eros aparece acompanhada de suas alunas ou de algum corpo de baile e podemos notar a ausência de bailarinas negras, mesmo quando se tratava de coreografias inspiradas na cultura afro-brasileira. Em geral, vemos apenas a presença de negros em meio aos tocadores de atabaque, no conjunto musical que acompanhava as bailarinas. Talvez isso possa ser considerado um sinal de que, embora o interesse pela cultura de origem africana fosse crescente nos círculos culturais mais elitizados, um espaço real para a atuação do bailarino negro ainda não se efetivara (Monteiro, 2011, p. 6).

Diante deste estudo e análise feitos por Monteiro (2011), percebemos o quanto o branco se acredita dono da terra e das pessoas que ele desumaniza; “ele se considera o senhor predestinado deste mundo. Ele o submete, estabelece-se entre ele e o mundo uma relação de apropriação” (Fanon, 2008, p. 117).

Partindo desta premissa, a Dança Afrobrasileira, principalmente as recriadas a partir das danças dos orixás, demonstra sofrer obliteração nos espaços considerados de hierarquia e poder, sendo sempre vista como algo menor e sem relevância artística. Ora! Toda essa violência simbólica acontece quando essa estética de dança é proposta pela própria pessoa negra, pois quando é a pessoa branca que se apropria e produz arte de procedência africana, ela é visibilizada e aclamada publicamente.

Isto nos mostra como esta negativação da estética negra da dança engendra, recorrentemente, a abolição destes conhecimentos que, inclusive, se expandem para o âmbito acadêmico. Este espaço está repleto de intelectuais brancos(as) que desprezam os saberes do povo negro. No entanto, se apropriam destes saberes sem nenhum constrangimento, produzindo pesquisas sobre sua história e cultura, falando em seu nome, mas sem querer ser e nem passar pelos sofrimentos que passam as pessoas negras. Nesse sentido, Carvalho (2020) compreende que “o espaço institucional racista de base intensificou o modelo colonizado de conhecimento, e a colonização epistêmica, uma vez instalada, trouxe novo estímulo para a continuação da exclusão racial” (Carvalho, 2020, p. 85).

Esse ainda acredita que

A condição mesma das universidades foi colonizada. Nossa elite branca trouxe uma elite acadêmica européia branca para fundar uma universidade estritamente nos moldes das universidades ocidentais modernas. O modelo institucional foi o humboldtiano, com a separação entre saberes da matriz europeia e inscrevendo nossa academia como uma variante da chamada civilização ocidental (Carvalho, 2020, p. 84).

Em termos da produção artística, companhias brasileiras de dança contemporânea que prezam por elenco majoritariamente branco, ocupando funções de direção, coreografia e dançarinas, trazem como fonte de inspiração para suas estéticas cênicas as divindades iorubanas que, contraditoriamente, são diabolizadas pelo pensamento eurocêntrico. Estas montagens artísticas são, frequentemente, aclamadas pelas mais diferentes mídias, ocupando diferentes palcos, tendo como ponto de partida a exploração da temática advinda, principalmente, do candomblé e da umbanda. Porém, não deixam de enunciar na corporalidade da pessoa dançarina, a técnica clássica, facilmente reconhecível pelo público.

Esta condição nos leva a admitir que as nossas fontes culturais, tratadas como objeto de pesquisa artística pela branquitude, ainda continuam, nos espaços referentes à dança, capturadas pela lógica hegemônica que se abastece dos saberes africanos para promoverem, desrespeitosamente, a exclusão de seus descendentes. Com isso, acaba por negar a possibilidade de pessoas coreógrafas e dançarinas negras protagonizarem papéis em conformidade com o que lhes é próprio.

Inclusive, nos espaços de ensino, esta dinâmica de apagamento se mantém continuada e, apesar de sabermos da existência da lei 10.639/03, que trata da obrigatoriedade do ensino da cultura negra, ainda assim, por conta do advento do racismo e da desigualdade social, esta realidade é considerada distante.

O silêncio das escolas sobre as dinâmicas das relações raciais tem permitido que seja transmitida aos alunos uma pretensa superioridade branca, sem que haja questionamento desse problema por parte dos profissionais da educação e envolvendo o cotidiano escolar em práticas prejudiciais em relação ao grupo negro. Silenciar-se diante do problema não apaga magicamente as diferenças e, ao contrário, permite que cada um construa, a seu modo, um entendimento muitas vezes estereotipado do outro. Esse entendimento acaba sendo pautado pelas vivências sociais de modo acrítico, conformando a divisão e a hierarquização raciais (Milan & Soerensen, 2011, p. 2).

Esta situação se dá, especificamente, devido à inexpressiva participação de pessoas gestoras, coordenadoras e professoras negras no âmbito de ensino, inclusive de arte, pelo não reconhecimento da diversidade que promove o preconceito.

Dança da Rainha Mercedes Baptista: contexto da Dança Afrobrasileira

Lembrando o contexto em que surge a Dança Afrobrasileira, trazemos como paisagem o movimento modernista nacional, que teve início na primeira metade do século XX. O movimento artístico, cultural e literário tem seu marco oficial com a Semana de Arte Moderna de 1922 e aparece como propulsor para a inovação no campo artístico e cultural, agregando as manifestações populares indígenas e africanas na formação de uma cultura moderna brasileira.

Eros Volúsia e Mercedes Baptista são referências quando tratamos de balé clássico e Dança Afrobrasileira. Isso porque, na estilização das suas danças, ambas trouxeram a figura do orixá como um dos principais elementos constituintes. A primeira, mulher branca, nascida no Rio de Janeiro, em uma família da elite carioca, iniciou sua formação em balé clássico aos quatro anos de idade. Projetou-se, nacional e internacionalmente, através de coreografias próprias inspiradas na cultura brasileira. Foi-lhe atribuída a invenção de um “bailado nacional”, num movimento que seguia as proposições da Semana de Arte Moderna de 1922, através da incorporação, na dança clássica, de elementos culturais, essencialmente, negros.

Assim, a Dança Afrobrasileira, caracterizada como primitiva, sensual, exótica, era utilizada por artistas brancas, como Eros, que se consideravam em nível de superioridade. Com comportamento racista, explicitamente notado nos lugares onde seu trabalho era apresentado, destinava à figura artística do elenco negro, presente em suas obras, o lugar de subordinação. Essa condição era percebida nos diversos espaços onde apresentavam seus trabalhos. Certamente, a valorização a ser dada aos dançarinos e dançarinas afrodescendentes só seria efetivada quando um deles, em busca de sua autonomia e direitos, de forma política, organizada e crítica, ocupasse o espaço de liderança.

A segunda, mulher negra, nascida no interior do Rio de Janeiro, de origem humilde, trabalhou como doméstica e bilheteira de cinema. Tornou-se Girl no teatro de revista, espaço que abriu possibilidades para que realizasse o desejo em estudar dança gratuitamente com Eros Volúsia. Conquistou, em pouco tempo, a oportunidade de subir ao palco para se apresentar. Ali, sofreu processos violentos de invisibilização e subalternização, o que a fez buscar a Escola de Dança do Theatro Municipal, onde lhe foi permitido frequentar gratuitamente as aulas, após relatar sobre sua realidade social (Melgaço, 2007).

No livro “Mercedes Baptista – A criação da identidade negra na dança”, o autor Paulo Melgaço confirma:

Naquele mesmo ano, aconteceu sua primeira apresentação pública, em um espetáculo organizado por Eros, no Teatro Ginásio Português. O pianista da escola criou a música “pintando o sete” para que ela se apresentasse em conjunto com Otacílio Rodrigues. A apresentação foi um sucesso, confirmando o talento da jovem para a dança (Melgaço, 2007, p. 14).

Nesta ocasião, mesmo fazendo papel de empregada no número apresentado, Mercedes Baptista arrancou aplausos da plateia, sendo mencionada no jornal o Globo como “a revelação da noite”, juntamente com Otacílio. Esse evento rendeu o convite para que a apresentação fosse feita em outro local e Eros foi solicitada a selecionar os melhores números. Para surpresa de Mercedes, o seu não foi escolhido, ficando magoada por sua professora e coreógrafa ter escolhido outro, interpretado por um bailarino branco e que não tinha nenhum destaque no corpo de baile.

Esse foi um dos tantos episódios que ocorreram, fazendo com que Mercedes Baptista se sentisse pouco valorizada e até discriminada por Eros. Nos diversos ambientes culturais frequentados pela elite, as apresentações artísticas que traziam temas relacionados à africanidade eram muito requisitadas e apreciadas. O problema é que era negado ao corpo negro a oportunidade de ocupar esse espaço, estando sabotada, recorrentemente, sua atuação.

Diante das recorrências racistas que sofria no Corpo de Baile por ser uma mulher negra, acabou participando do concurso promovido pelo Teatro Experimental dos Negros (TEN), sendo eleita a “Rainha das Mulatas”. O concurso tinha como objetivo ampliar a autoestima da mulher negra brasileira promovendo sua beleza. Nesse momento, inicia a sua relação de amizade com Abdias do Nascimento, fundador do TEN que a convida para integrar a entidade como bailarina, coreógrafa e colaboradora.

Foi no 1º Congresso do Negro Brasileiro, que tinha como foco discussões e estudos das questões referentes ao negro, elaborado pelo TEN, de 26 de agosto a 4 de setembro de 1950, no Rio de Janeiro que Mercedes conheceu Katharine Dunham, antropóloga, dançarina, coreógrafa, professora e ativista social na defesa de causas relacionadas ao negro. Dunham veio ao Brasil realizar diversas atividades artísticas com o propósito de oferecer uma bolsa de estudos, oportunizando a atuação em seu grupo, na cidade de Nova Iorque. Mercedes, além de sua competência artística e por já estar envolvida com o movimento negro brasileiro, foi a escolhida. De volta ao Brasil, começou a introduzir na sua prática o aprendizado adquirido com Dunham que motivava a busca pela descoberta de um estilo de dança que valorizasse a sua afrodescendência.

As danças dos orixás se tornaram inspiração para a criação do Balé Folclórico de Mercedes Baptista, que foi considerada a criadora da identidade negra para a Dança reconhecida como Afrobrasileira. Mesmo não sendo adepta da religião do candomblé, se encarregou de reelaborar e aplicar essa dança em suas aulas e nos trabalhos coreográficos para os palcos. Podemos dizer que a sua dança trouxe algo de específico: a valorização da tradição africana por intermédio da dança dos orixás em ruptura com os códigos do balé clássico. Contudo, as suas aulas se estruturavam nos moldes da técnica clássica e da dança moderna com barra, centro, diagonal e a nomenclatura de alguns passos em francês.

Investigações direcionadas para a criação de formas de danças que se ajustassem ao cenário artístico-cultural vigente, sem considerar a diversidade de corpos, promoveram o aparecimento da Dança Afrobrasileira. Tal dança conformou-se com base na reprodução das danças dos orixás, mas desconsiderou algumas narrativas mitológicas iorubanas, apresentadas por meio de itans referentes à presença de determinado orixá com deficiência. No itan “Ossaim é mutilado por Orunmilá”, Reginaldo Prandi (2001, p. 160) revela a condição de orixá com deficiência que se torna Ossaim.

Ao indicarmos o itan supracitado acreditamos ser possível reelaborar e ressignificar a deficiência no contexto da nossa escrita, colaborando para repensarmos algumas atitudes e pensamentos na relação com a pessoa negra com deficiência em diversos ambientes, inclusive na Dança. Trazemos para o campo simbólico a existência dessas pessoas e suas contribuições para a sociedade, destituindo a deficiência da sua herança histórico-religiosa como culpa ou resultado de um castigo divino, como algo negativo já que se torna, pelo que nos conta esse itan, uma das características do próprio orixá.

Imaginar a continuidade desse itan a partir do ponto em que Ossaim passa a viver com uma nova corporalidade e continua sendo o mesmo orixá realizando igualmente todos os seus feitos, seria rejeitar a histórica única (Adiche, 2019) que vem sendo contada, ao longo dos tempos, sobre as pessoas com deficiência. Ou seja, Ossaim não deixa de ser orixá por causa da deficiência, assim como uma mulher negra não deixa de ser mulher, nem negra, e muito menos dançarina, por possuir uma deficiência.

Deste modo, questionamos: como compreender as conformações da Dança Afrobrasileira, reelaborada a partir das danças dos orixás e seus orikis3 e itans4, se este aspecto é totalmente desconsiderado nos contextos artístico-educativos por parte das pessoas propositoras e fazedoras destas danças? Principalmente quando falamos de Salvador, um dos pólos afirmado com os movimentos realizados pelos afrodescendentes que lutaram pelo resgate da cultura de motriz africana e seus valores, tão violentados, negados e oprimidos ao longo da história, onde essa dança se configura como um território de resistência. Neste sentido, a dança negra surge como contradispositivo do racismo, da exclusão, da invisibilidade, negadores da identidade negra. Ela é atitude política! (Silva, 2016).

Dança da Rainha Josy Brasil

Josimare de Cristo Reis, conhecida como Josy Brasil, é uma dançarina e comunicóloga, nascida na zona rural do interior da Bahia. Admiradora da dança e do esporte, pelo contexto familiar e territorial, não recebeu incentivo para desenvolver suas aptidões, precisando interromper uma carreira emergente e vitoriosa no Jiu Jitsu, aos 16 anos. Assim, seguindo uma trajetória comum a muitas pessoas que vivem nos recantos do Brasil, decide mudar-se para a cidade grande, a fim de conseguir melhores condições de vida. Aos 19 anos, casa-se com um italiano e passa a viver na Itália, onde trabalhou como garçonete, modelo, babá, comerciante, empresária, entre outros serviços. Na cidade de Bergamo, Josy conheceu um grupo de espetáculos folclorísticos que se apresentava com shows de música e dança brasileira e latina (samba, salsa, merengue, bachata, chá-chá-chá). Foi nessa companhia que aprendeu a dançar, permanecendo no grupo por quatorze anos.

Apesar de sua trajetória artística e dos anos de trabalho com dança na Europa, Josy ainda acredita que precisaria ter feito balé para ser reconhecida como dançarina profissional, já que nunca teve oportunidade de um estudo formal em Dança. A imposição da dança clássica como base para outras danças cria profundas marcas em quem não teve oportunidade ou não possui a corporalidade exigida para executá-la. Revela um discurso colonizador de ser o princípio para quaisquer danças, embora saibamos que isso seja uma falácia. Por que uma sambista ou uma dançarina de Dança Afro, por exemplo, precisaria, como imposição, saber balé para ser reconhecida?

Esse pensamento colonizador recai em inúmeras exclusões, mais especificamente no contexto desse artigo, sobre corpos negros e com deficiência. Estruturalmente, a dança clássica exige um certo tipo de corpo que não comporta a diversidade, provocando insegurança, desconforto, sentimento de incapacidade e não pertença em quem não se enquadra nesses padrões. Vimos na trajetória de Mercedes Baptista, admiradora, estudiosa e com formação clássica, o quanto sua presença foi invisibilizada e excluída no âmbito desta técnica.

Recordando ainda a história de Josy Brasil, em 2017, aos 32 anos, ela sofreu um acidente automobilístico, na Itália, que lhe causou uma lesão medular deixando-a paraplégica. De volta ao seu país de origem, Josy passou a frequentar espaços da cultura e arte de resistência negra, na cidade de Salvador, sobretudo, os shows dos blocos afros. Essas entidades nasceram de uma relação com a forte atuação política dos movimentos negros, por causa da repressão sofrida pela população negra, excluída de oportunidades, estando posicionada em situação de vulnerabilidade social gerada pelo racismo.

Nesta direção, o movimento negro buscou estratégias de lutas antirracistas, na promoção da integração da comunidade negra na sociedade brasileira. Dentre as tantas ações propostas, encontra-se a inclusão de elementos da musicalidade, da dança com suas expressões corporais, indumentária, cabelos dread ou black power, com a finalidade de dar visibilidade aos seus corpos a partir de elementos estéticos e de elevação da autoestima.

Entre os principais blocos afro de Salvador, destacam-se Muzenza, Malê DeBalê e Ilê Ayê. Este último foi o pioneiro em promover concursos da beleza negra como forma de resistência em resposta ao processo excludente e de apagamento advindo da sociedade racista soteropolitana. No ano de 1976, cria o concurso “Deusa do Ébano” para a eleição de uma mulher negra que se tornasse a rainha do bloco e representante da entidade no ciclo carnavalesco, conferindo uma política de ação afirmativa, valorização, visibilidade e empoderamento.

Essas mulheres, para participarem do concurso, como forma de reconhecimento e afirmação da identidade, eram motivadas e orientadas, a partir do tema proposto pelo bloco, a produzirem seus figurinos. Era importante que levassem em consideração a utilização de implementos afro-religiosos na indumentária, adereços e cabelos que, se somariam às suas danças. Esta iniciativa e conformação, promovidas pelo Bloco Afro Ilê Aiyê inspirou, com suas ações, outros blocos que foram fundados posteriormente, a exemplo dos já citados Malê DeBalê e Muzenza.

Josy Brasil sempre sonhou em ser “rainha de bloco afro”. Quando foram anunciadas as inscrições para o concurso da Deusa do Ébano 2019, sem nenhum impedimento no regulamento para a participação de pessoas com deficiência, ela decidiu se inscrever. Encontrou suporte na professora e coreógrafa Graziela Santos para dar-lhe orientações nos ajustes da Dança Afrobrasileira à sua condição de cadeirante.

Graziela já havia tido experiências anteriores em dança com pessoas com deficiência quando participou, por dois anos, da Atividade Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS) Acessibilidade em Trânsito Poético e em algumas ações do Grupo X de Improvisação em Dança, na época, coordenados pela professora Fátima Daltro da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia. Sem dúvida, os conhecimentos gerados por esse trabalho sobre acessibilidade, corpo e dança na relação com a deficiência contribuiram para o interesse dessa profissional em desenvolver o trabalho de preparação de Josy Brasil.

Antes de encontrar a professora Graziela Santos, Josy havia procurado, sem sucesso, outras profissionais que também possuíam experiências em concursos de rainhas dos blocos afro. A condição de cadeirante pode ter sido um fator para o silêncio que Josy recebeu como resposta, assim como foi um fator decisivo para sua desclassificação na primeira etapa do concurso. A presença de uma dançarina com deficiência nesse ambiente questionaria todos os padrões que foram se fixando no contexto da Dança Afrobrasileira, assim como os padrões excludentes fixados pela dança clássica e moderna que tanto criticamos.

Nesse sentido, profissionais que se sustentam em bases de poder da corponormatividade preferiram, por falta de parâmetros desta dança em corpos negros com deficiência, eliminar de imediato aquela que se apresentava como fora da norma naquele concurso. Para refletir acerca da estrutura normativa que determina exclusões e opressões contra as pessoas com deficiência no contexto da Dança, em suas metodologias e processos de criação, formação, curadoria e produção, o professor e pesquisador Edu Oliveira criou o conceito de “bipedia compulsória” (Carmo, 2020).

Este conceito aproxima-se das discussões aprofundadas pelo modelo histórico-cultural, apresentado por Robert McRuer (2006). Nesta abordagem da deficiência, compreende-se que mesmo com todas as mudanças conceituais e políticas que surgiram a partir da década 1970, a pessoa com deficiência continua sendo vista como incapaz, colocada à margem da dinâmica social. Mesmo se vivêssemos, utopicamente, em uma sociedade completamente acessível, as pessoas com deficiência continuariam a ser percebidas como inferiores, coitadinhas e incapazes. Por essa razão, toda experiência de corpo compreendida dentro do espectro das diversas deficiências está fadada ao fracasso, ao silenciamento, invisibilidade, exclusão e violência.

A noção do corpo capaz (McRuer, 2006) como universal e desejável, como corpo central em espaços de poder e decisão, como corpo colonizador, nos provoca a interseccionalizar a experiência da deficiência com a de negritude, no processo histórico de subalternização em relação ao corpo sem deficiência e branco, respectivamente. É perceptível que a bipedia compulsória (Carmo, 2020), nos termos de Edu Oliveira, já se mostra como um modelo rígido na estética e na dança dos concursos de rainhas dos blocos afro de Salvador.

Por outro lado, a presença de uma dançarina cadeirante num concurso como esse, por si só, já desconstrói radicalmente toda a formulação de corpo, dança e beleza dos padrões tornados hegemônicos também nesses espaços. A deficiência, em qualquer contexto, denuncia a fragilidade e ficção da normatividade (McRuer, 2006), o esvaziamento de certos discursos que se pretendem transformadores, mas repetem, de outras maneiras, opressões e invisibilidades.

A mudança efetiva, segundo Walter Mignolo (2008, p. 288) só pode ocorrer através da desobediência epistêmica, sem a qual “permaneceremos no domínio da oposição interna aos conceitos modernos e eurocentrados”. Por uma perspectiva descolonial, não se trata de negar e abandonar o que já foi produzido, mas “aprender a desaprender” para que outros modos de conhecimento possam emergir.

A presença de pessoas com deficiência nos ambientes da Dança Afrobrasileira pode apresentar inúmeras possibilidades de se construir saberes distantes das estruturas coloniais. Sem parâmetros ou práticas que privilegiem outros corpos além dos normativos, profissionais desta área artística tem muito a aprender com as pessoas com deficiência como ação descolonizadora, a qual, para Mignolo (2008, p. 290), trata-se de

substituir a geopolítica de Estado de conhecimento de seu fundamento na história imperial do Ocidente dos últimos cinco séculos, pela geopolítica e a política de Estado de pessoas, línguas, religiões, conceitos políticos e econômicos, subjetividades, etc., que foram racializadas (ou seja, sua óbvia humanidade foi negada).

Substituir procedimentos, pensamentos e comportamentos requer uma postura ética. Estamos precisando mesmo, urgentemente, de uma ética que radicalize o processo de descolonização do pensamento ocidental mantido ainda em determinados espaços engendrados por modelos hegemônicos e que, mesmo apresentando-se de maneira crítica e disruptiva em relação ao sistema colonial, acabam por construir outras hegemonias ainda baseadas em epistemes do próprio colonizador, como temos visto nos ambientes da Dança como um todo, incluindo a Dança Afrobrasileira. É inegável a importância desta dança e sua ruptura com determinados aspectos do pensamento colonial. No entanto, a Dança Afrobrasileira não conseguiu ainda se destituir, completamente, das suas bases na dança clássica e moderna, como apresentado anteriormente. Desse modo, acaba por repetir modelos ocidentais excludentes, sobretudo em relação à diversidade de corpos.

Na contramão da colonialidade, a professora e pesquisadora Marilza Oliveira (Silva, 2016) em sua pesquisa doutoral, a partir do que nomeia, CorpOrixá: Fundamentos para Danças de Poéticas Ancestrais, propõe uma compreensão na perspectiva da ancestralidade e da multirreferencialidade para os estudos da Dança Afrobrasileira. Sua pesquisa impulsiona um lugar ético de inclusão, de encontros e relações entre os aspectos de nossa natureza, de nossa história e de nossa cultura. Essa possibilidade de construção e difusão de conhecimentos reivindica, pela via artística, o diálogo com o campo da educação das relações étnico-raciais no Brasil, essencial para o processo de formação identitária e de libertação.

Este estudo que se constitui em uma proposição para a criação de processos artístico-educativos que implica tradição e contemporaneidade. O orixá, partícula divina existente nas pessoas (Santos, 2010), é apartado do ambiente religioso, estabelecendo-se assim, conexões relacionadas aos elementos da natureza que este exerce domínio, a partir de processos que disparam questões sócio-histórico-culturais. Dança-se a partir da diversidade de corpos, de suas histórias individuais e coletivas e no reconhecimento de que também somos natureza.

A não ser pelo próprio capacitismo, é injustificável que os debates acerca da deficiência não sejam incluídos nas pautas de discussões dos grupos sociais que defendem um mundo mais justo e igualitário para todas as pessoas. A saber, capacitismo é um termo compreendido “ora como uma forma de discriminação, violência e opressão social contra pessoas com deficiência, ora uma normatividade corporal e comportamental baseada na premissa de uma funcionalidade total do indivíduo” (Mello, 2019, p. 130). Nesse sentido, a deficiência está associada à incapacidade.

Sem dúvida, por ser considerada incapaz de tornar-se uma rainha de bloco afro por causa da sua deficiência, o capacitismo desclassificou Josy Brasil no concurso da Deusa do Ébano. Em conversas com pessoas ligadas ao concurso, surgiram justificativas de que a Dança Afrobrasileira exige a verticalidade que um corpo cadeirante não pode corresponder. Outro possível fator impeditivo para sua classificação seria a falta de acessibilidade e a dificuldade para adaptação do palco das apresentações na final do concurso, na sede do bloco Ilê Ayê.

Mesmo sem ter sido classificada naquele concurso, Josy Brasil tornou-se destaque na imprensa local pelo ineditismo da presença de uma mulher negra com deficiência em espaços como aquele. Essa visibilidade foi importante para lhe alçar ao posto de Muzembela 2019 ou rainha do bloco afro Muzenza. A partir dali Josy entraria para a história do carnaval baiano como a primeira rainha cadeirante de um bloco afro.

Oficina Dança de Rainhas: Dança Afro e deficiência

Logo depois do concurso que coroou Josy Brasil como a Muzembela 2019, iniciaram-se as aulas da UFBA. Geralmente, a Escola de Dança faz uma extensa programação para recepcionar estudantes durante a semana inaugural do primeiro semestre e o corpo docente sugere atividades referentes aos seus componentes curriculares. Diante da importância do título conquistado por Josy, foi proposta como primeira atividade da ACCS Acessibilidade em Trânsito Poético a oficina “Dança de Rainhas: Dança Afro e deficiência”, ministrada pela Muzembela e sua professora, Graziela Santos, pessoa sem deficiência.

A ACCS Acessibilidade em Trânsito Poético, atualmente, coordenada pelas docentes Edu Oliveira, Cecília Accioly e Maria Beatriz do Carmo, desenvolve trabalho junto a grupos de pessoas com e sem deficiência questionando os mecanismos de exclusão presentes no campo da Dança. Para isso, propõe experiências nas áreas de criação e formação artística, buscando estratégias para que a presença de pessoas com deficiência em espaços de construção de conhecimento em Dança favoreça mudanças paradigmáticas nessa área. Assim, foi proposta a aula de Dança Afrobrasileira com Josy Brasil para que compartilhasse também, em um bate-papo, sua experiência nos concursos de beleza negra dos blocos afro.

A referida oficina atraiu muitas pessoas que lotaram o Teatro do Movimento da Escola de Dança. O público era diverso e contava com a participação de estudantes de variados cursos de graduação e pós-graduação da UFBA, assim como pessoas da comunidade externa à Universidade. O número significativo de pessoas com diversas deficiências (física, visual e auditiva) foi um fator importante e desafiador para aquela experiência, uma vez que, como dito anteriormente, a Dança Afrobrasileira apresenta princípios fortemente normativos. A diversidade ali posta exigia uma atenção especial e uma metodologia apropriada para considerar as especificidades corporais que formavam aquele coletivo.

A professora Marilza Oliveira, por sua extensa experiência e relevante pesquisa em Dança Afrobrasileira, havia sido convidada a mediar o bate-papo com Josy Brasil e Graziela Santos, ao final da oficina. Nessa ocasião, pela primeira vez, Marilza observou que a relação corpo-tempo-espaço-movimento proposta por esta estética de dança se diferenciava entre as pessoas com e sem deficiência. Por isso, ela que não possui deficiência, decidiu fazer a aula experimentando outras possibilidades corporais que fugissem da normatividade própria da Dança Afrobrasileira, acompanhando as estratégias apresentadas pelas pessoas com deficiência presentes na atividade.

Neste momento, Edu Oliveira já havia se liberado da sua cadeira de rodas para experienciar a dança em nível baixo, utilizando a força dos braços para conseguir se mover no solo e realizar a célula de movimento no tempo determinado pelas professoras da oficina. Marilza, então, dispensou sua verticalidade para experimentar outros jeitos de mover no chão. Nas sequências de movimentos realizadas em deslocamento no solo percebeu a dificuldade em associar o movimento corporal com o ritmo demarcado pela percussão do samba afro, procedente do bloco Ilê Aiyê. Isso porque a própria célula rítmica executada por uma pessoa “bípede”, ganha outros contornos e novas e, não menos interessantes, possibilidades de execução no corpo de uma pessoa com deficiência.

Marilza observou o quanto profissionais docentes da Dança Afrobrasileira não dão a devida importância às configurações rítmicas advindas dos instrumentos percussivos e desprezam as diversas perspectivas de divisão musical que contemplam atividades com a participação de pessoas com deficiência. Tais profissionais não se abrem aos novos desafios e muito menos estão atentas às suas próprias posturas, na proposição de tópicos conceituais, metodológicos e atitudinais em sala de aula que considere a presença dessas pessoas.

Na prática, a utilização dos braços de uma pessoa cadeirante para a execução dos movimentos da dança, ao mesmo tempo em que se precisa utilizá-los para o deslocamento, não pode acompanhar o ritmo determinado para a efetivação da movimentação sugerida. Naquela oficina, foram várias tentativas em alterar as figuras musicais e, consequentemente, a sua duração, sem renunciar à expressividade necessária àquela ação. Foi interessante observar que cada configuração corporal exigia ajustes específicos para a realização daquela dança. Por exemplo, enquanto a pessoa que dança na cadeira de rodas utiliza um tempo musical para a realização dos movimentos e outro tempo para o deslocamento no espaço, a pessoa que dança em pé pode deslocar-se concomitantemente aos movimentos de braço. Também, os enunciados a respeito de direção e movimentação quer seja de pernas, quadril, cabeça, braços ou ombros precisavam contemplar com maior detalhamento as pessoas cegas presentes no teatro.

No entanto, naquela oficina, mesmo que uma das professoras fosse uma mulher negra cadeirante, o pensamento normativo se impunha nos exercícios propostos, elaborados a partir dos corpos sem deficiência. Era evidente que não podia, naquele contexto, em meio às diferenças, se desconsiderar cada corpo e suas particularidades em relação ao ritmo percussivo e sua conexão com o movimento. As experiências diversas da deficiência, ali, presentes, exigiam organização corporal e acionamentos diferentes do que determina a codificação que parece fixada pela Dança Afrobrasileira, forjada na verticalidade e corponormatividade eurocêntrica. Nessa experiência, os diversos tipos de deficiência apresentaram novas possibilidades de tempo, espaço e movimento para algo que parecia dado e definitivo.

Sem dúvidas o contato e o convívio com o diferente erradicam preconceitos e estigmas em relação àquelas pessoas consideradas inferiores e incapazes. É através do encontro que estas têm a oportunidade de mostrar suas potencialidades e apresentarem outras maneiras de se olhar para um determinado fenômeno. No que tange o campo da Dança com pessoas com deficiência, seja lá qual estilo ou técnica que se trabalhe, requer atenção para as especificidades de cada corpo e exige adequações metodológicas a fim de potencializar as características únicas de cada pessoa.

Se faz necessário repensarmos os modelos pelos quais a Dança continua alicerçada, pois demonstra ainda pouca flexibilidade nos seus espaços de formação, circulação, produção e criação artística que contemple diferentes fisicalidades e experiências. Desconstruir essa ideia estruturante da Dança forjada pelo pensamento ocidental que, ao ser enunciada, ainda carrega em si imagens relacionadas a um corpo branco, longilíneo, bípede, cisgênero, virtuoso, harmonioso e legitimado como seu principal porta voz. Urge problematizarmos os modos de pensar a criação, difusão e ensino referentes à Dança Afrobrasileira, reconhecendo as incoerências históricas de um modelo de dança afetada pelo patriarcado branco, hétero, cis e bípede, que desconhece a riqueza e beleza que tange a diversidade.

Bibliographie

Adichie, Chimamanda Ngozi (2019). O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras.

Carmo, Carlos Eduardo Oliveira do. (2020) Fissuras pós-abissais em espaços demarcados pela bipedia compulsória na dança. Ephemera: Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFOP, 3 (5), 40-61.

Carvalho, José Jorge (2020). Encontro de Saberes e descolonização: para uma refundação ética, racial e epistêmica das universidades brasileiras. Em Joaze Bernardino Costa; Nelson Maldonado Torres; Ramón Grosfoguel (Org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico (pp. 79-106). Belo Horizonte: Autêntica, 2ª ed.

Fanon, Frantz (2008). Pele negra, máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA.

McRuer, Robert (2006). Crip Theory: Cultural Signs of Queerness and Disability. New York: New York University Press.

Melgaço, Paulo (2007). Mercedes Baptista - A criação da identidade negra na dança. Rio de Janeiro: Fundação Cultural Palmares.

Mello, Anahi Guedes de Mello (2019). Politizar a deficiência, aleijar o queer: algumas notas sobre a produção da hashtag #écapacitismoquando no facebook. Em Nair Prata; Sônia Caldas Pessoa (org.). Desigualdades, gêneros e comunicação (pp. 125-142). São Paulo: Intercom.

Mignolo, Walter (2008). Desobediência epistêmica: A opção descolonial e o significado de identidade em política. Tradução de Ângela Lopes Norte. Cadernos de literatura UFF, 34, 287-324.

Milan, Joenir Antönio & Soerensen, Claudiana (2011). A dança negra / afro-brasileira como fator educacional. Revista África e Africanidades, 12. Disponivel em: https://africaeafricanidades.com.br/edicao12.html

Monteiro, Marianna (2011). Dança Afro: uma dança moderna brasileira. Em Sigrid Nora e Maira Spanghero (org.). Húmus 4 (pp. 51-59). Caxias do Sul: Lorigraf.

Moreira, Martha Cristina Nunes; Dias, Francine de Souza; Mello, Anahi Guedes de; York, Sara Wagner (2022). Gramáticas do capacitismo: diálogos nas dobras entre deficiência, gênero, infância e adolescência. Ciência & saúde coletiva, 27 (10), 3949-3958.

Prandi, Reginaldo (2001). Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras.

Silva, Marilza (2016). Ossain como poética para uma dança afro-brasileira. Dissertação (Mestrado em Dança) – Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia.

Santos, Maria Stella de Azevedo (2010). Meu tempo é agora. 2a edição. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia.

Notes

1 Optamos em nomear a Dança Afrobrasileira no singular, entendendo a sua relação com a diáspora africana e as diversas expressões que nela estão contidas. Nas variadas estéticas de dança dentro de um referencial comum, a Dança Afrobrasileira aglomera várias danças de natureza afrorreferenciada, reinventadas em território brasileiro. Retour au texte

2 Uma Atividade Curricular em Comunidade e Sociedade (ACCS) constitui-se, além de atividade de extensão, em um componente curricular dos cursos de Graduação e Pós-Graduação, onde a comunidade interna da UFBA – estudantes e professores – desenvolve ações com determinados grupos da comunidade externa. Retour au texte

3 Do yorùbá (orí = cabeça, kì = saudar), são versos, frases ou poemas que são formados para saudar o orixá referindo-se a sua origem, suas qualidades e ancestralidade. Retour au texte

4 É uma palavra de origem iorubá que significa história ou conto. Retour au texte

Citer cet article

Référence électronique

Marilza Oliveira da Silva et Carlos Eduardo Oliveira do Carmo, « Dança das Rainhas Mercedes Baptista e Josy Brasil: Marcas do racismo e do capacitismo na Dança Afrobrasileira », Cahiers franco-latino-américains d'études sur le handicap [En ligne], 1 | 2023, mis en ligne le 22 décembre 2023, consulté le 21 novembre 2024. URL : https://cfla-discapacidad.pergola-publications.fr/index.php?id=179
DOI : https://dx.doi.org/10.56078/cfla_discapacidad.179

Auteurs

Marilza Oliveira da Silva

Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil, marilzafrourbana@gmail.com
Marilza Oliveira da Silva é artista da Dança, pesquisadora, educadora no campo das danças afrobrasileiras, preparadora corporal, curadora e professora da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Dedica-se à área de conhecimento referente aos Estudos do Corpo com ênfase em Danças Populares, Indígenas e Afro-Brasileiras. Mestra em Dança e especialista em estudos contemporâneos em dança pelo Programa de Pós-graduação da mesma instituição. Integrante do Grupo de Pesquisa Porra (UFBA), onde coordena a linha de pesquisa, Experiências Artístico e/ou Educativas em Danças Negras e Ancestralidade. Autora dos e-books Danças Indígenas e Afrobrasileiras e Dança como mediação educacional para a diversidade e ações afirmativas II.

Carlos Eduardo Oliveira do Carmo

Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil, eduimpro@gmail.com
Carlos Eduardo Oliveira do Carmo é Doutor em difusão do Conhecimento, artista da dança, performance, pesquisador, escritor e professor da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA). É Mestre em Dança pelo Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA com especialização em Arteterapia concluída na Universidade Católica de Salvador. Integrante do Grupo de Pesquisa Enlace da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e do Grupo de Pesquisa Porra da UFBA, onde coordena a linha de pesquisa “Processos artísticos e/ou educativos em Dança: corpos, infâncias e deficiências.

Droits d'auteur

Licence Creative Commons – Attribution 4.0 International – CC BY 4.0