Corpos e textos
Em artigo sobre a escrita autobiográfica de pessoas transexuais, Adelaine LaGuardia (2014) lança mão de um profícuo conceito, a autocorpografia. Segundo a teórica cultural, a constituição da identidade trans passa inevitavelmente por um processo de leitura, no qual textos jornalísticos, biomédicos, biográficos e autobiográficos vão compondo uma complexa rede de referências que serão paradigmáticas para a manutenção ou para a ruptura das identidades socialmente estabelecidas. Nas palavras da pesquisadora,
É possível verificar o papel central que a leitura desempenha no processo de constituição da identidade trans, que pode ser verificada em praticamente todos os relatos autobiográficos de transexuais aos quais denomino “autocorpografias”, já que a escrita se concentra na (des)construção do próprio corpo (LaGuardia, 2014, p.68).
Embora o conceito tenha sido cunhado de maneira específica a partir da escrita autobiográfica transexual, é possível verificar uma série de paralelos deste com a escrita autobiográfica de pessoas autistas – o que o torna mobilizador nas discussões acerca da identidade autista. Em Crip theory, Robert McRuer (2006) parte dos Estudos Queer para pensar a atuação dos paradigmas corporais sobre a identidade e os papéis sociais assumidos pelos sujeitos. Se o sistema sexo-gênero atua como força política que oprime os corpos a uma normatividade, conforme já observava Judith Butler (2003), McRuer assinala que essa política também atua na capacidade produtiva dos corpos. Assim, tal qual os sujeitos queer (que não se encaixam nas performances de gênero socialmente aceitas) são objetos de interdição, violência e intervenção biomédica, também os corpos crip sofrem essa pressão, já que não desempenham a performance produtiva esperada no universo capitalista.
No Brasil, estudiosos das deficiências como Anahi Guedes de Mello (2016), Marivete Gesser (2021) e Marcos Gavério (2015) têm traduzido os corpos crip como “corpos aleijados”; e esta intervenção social assinalada por McRuer como “corponormatividade”. Nos termos de Mello (2016, n.p.), a corponormativiade “em linhas gerais, dependendo do contexto das frases usadas [...], poder-se-ia traduzir como corpos sãos, hábeis, aptos, capazes ou sem deficiência”. Vale acrescentar ao conceito de corponormatividade trazido por Mello em diálogo com McRuer aquilo que a historiadora Catherine Kudlick (2003) já constatava: sempre que a deficiência foi ressaltada pelas sociedades, o intuito foi de assegurar o status de uma suposta “normalidade” ou “naturalidade” para grupos sociais dominantes.
A (des)construção (LaGuardia, 2014) do corpo autista, nesse sentido, trataria da leitura crítica que evidencia sua construção social amparada pela literatura biomédica, religiosa, legistativa, entre outras. Lembrando que, para Jacques Derrida (1995), a operação de desconstrução está relacionada ao abandono referencial a um centro, arquia, signo ou origem de sentidos, portanto um descentramento. Assim, signos como “errado”, “inapto”, “incapaz”, “alheio”, “incomunicável”, “inacessível”, “irracional”, “insensível”, entre outros, são desvelados como centro de um sistema de sentidos que constitui o corpo autista sob a política de uma corponormatividade que reduz os sujeitos à lógica utilitarista. Logo, tal visão acaba por perpetrar a ideia do corpo autista como um corpo passível de intervenção e correção medicamentosa, terapêutica, comportamental, espiritual etc.
Desconstruir o corpo autista textualizado pela política da corponormatividade a partir da perspectiva dos aleijamentos passa então pela reconstituição crítica e desconfiada da identidade autista pelas próprias pessoas autistas. Assim, as grafias da experiência, da complexidade e da pluralidade autista são fundamentais enquanto ato autocorpográfico capaz de reescrever o corpo autista sob novos signos. Nesse sentido, a partilha de diferentes textos biográficos, sejam eles autobiografias propriamente ditas, mas também narrativas de ficção, poemas, testemunhos, músicas, filmes, histórias em quadrinhos, entre outros pela comunidade autista, é fundamental para o estabelecimento de um senso de pertencimento coletivo e de contestação das narrativas capacitistas que originaram o diagnóstico no século XX.
Tomando a autocorpografia autista como prática política de aleijamento, o presente artigo analisará dois livros de poesia que adotam tom autobiográfico: Parabólicas (2018), do autista brasileiro Pedro de Lucena, e Movement: performance poetry written down (2019), do autista britânico Callum Arthur Brazzó. Em ambos os casos, percebe-se a centralidade da memória na construção narrativa formada pela sequência de poemas. A relevância da memória enquanto elemento estruturante de ambos livros foi, inclusive, critério para a escolha das duas obras de análise. O corpo daquele que escreve é tido assim como uma espécie de arquivo de convergência das reminiscências.
Parece ser consenso nos escritos de pessoas autistas um funcionamento singular da memória em comparação à população neurotípica. Em sua autobiografia Look me in the eye, John Elder Robison (2007) relata certa desconfiança do público quando, em palestras, narra detalhes pormenorizados de acontecimentos muito específicos de sua infância – detalhes impossíveis de lembrar, de acordo com muitos. Quando há no público pessoas autistas, contudo, não há descrença nessas lembranças que, inclusive, costumam desencadear narrativas semelhantes de outros autistas. Temple Grandin e Richard Panek (2013), por sua vez, buscam na análise fisiológica do cérebro autista suporte para defender que, em geral, essa população possui memória de curto prazo abaixo da média e memória de longo prazo bastante acima da média.
Nas obras poéticas de Lucena e de Brazzó, a memória das vivências é recuperada corporalmente para ser escrita com diferentes articulações estético-corporais pelos respectivos sujeitos líricos. Nos dois livros, os paratextos já explicitam a utilização do gênero poético enquanto recurso autobiográfico – ambos com fotografias pessoais que destacam a biografia e o pertencimento familiar. No entanto, Parabólicas tem suas seções organizadas por critérios temáticos. Já Movement, por critérios cronológicos, percorrendo linearmente dos 11 aos 27 anos do autor. A linguagem poética de Pedro utiliza da ecolalia para relacionar diferentes vozes e colocá-las em diálogo. Já a de Callum explora a alexitimia para entender sentimentos e sensações.
A seguir, abordaremos mais detidamente cada uma dessas duas poéticas. No primeiro capítulo de análise, dedicado à obra de Pedro de Lucena, utilizaremos a ecolalia como operador de leitura para analisar as memórias redigidas em seus poemas. Já no segundo capítulo de análise, dedicado à obra de Callum Brazzó, a alexitimia será o operador de leitura que conduzirá a análise da vida escrita em versos. Ao fim, buscaremos responder como essas duas poéticas constroem autocorpografias capazes de reescrever os sentidos do corpo autista.
A ecolalia como fazer poético de um corpo-parabólica
Pedro de Lucena nasceu na cidade brasileira de Recife. Publicou Parabólicas de forma independente, em 2018, com apenas 20 anos de idade. A escrita da obra contou com o apoio de recursos alternativos de comunicação, já que Pedro é tido como um autista “não-oralizado”, segundo os termos biomédicos. Se pensarmos o título como um dos recursos que confere unidade a uma obra de poesia, a imagem da parabólica é uma importante chave de leitura para os poemas que compõem o livro. Já de início, a referida metáfora é explorada: “Ondas invisíveis que captam o essencial ser. / Revelam e velam toda a essência do viver” (Lucena, 2018, p. 8).
Ao assumir-se “antena parabólica”, o corpo do sujeito lírico torna-se então um corpo em comunicação: capaz de recuperar as vivências do próprio ser e de conectá-las aos outros, ou seja, um investimento de autocorpografia que busca o direito de narrar a própria história (Bhabha, 2014) e ressignificar um corpo tradicionalmente tido como vazio ou isolado: “um estranho ermitão vive na clausura”. Vale ressaltar que a clausura é construída socialmente, como na infeliz metáfora da fortaleza vazia, de Bruno Bettelheim (1967). Ao trazer à tona as “Paranoias de um viajante fugaz”, “em pura / Sintonia com sua essência excêntrica”, Pedro contraria as expectativas da ausência de linguagem imposta ao sujeito autista (Baggs, 2006; Rückert, 2021), revelando-se vívido, inquieto, em constante investimento linguístico, simbólico e metafórico.
Chama atenção, na escolha da metáfora da parabólica, a importância do elemento sonoro na constituição da poética de Lucena. Ao tempo todo são evocadas vozes, sons, memórias de si e dos outros, que se somam, repetem e misturam ao longo dos poemas. É importante ressaltar que o ato de repetir palavras ou frases é tradicionalmente assinalado como característica da linguagem autista sob o conceito de “ecolalia”. Em geral, a ecolalia é descrita na bibliografia biomédica como uma repetição mecânica, ausente de sentidos ou de contexto comunicacional. Para Mergl e Azoni (2015, p. 2073), por exemplo, “a ecolalia é um fenômeno persistente que se caracteriza como um distúrbio de linguagem, definida como a repetição em eco da fala do outro”. Já para Ganos et al (2012, p. 1222), a ecolalia é um comportamento imitativo componente da aprendizagem social que deveria ser superado ao longo do desenvolvimento: “sua persistência ou ressurgimento após uma certa idade, no entanto, pode ser um sinal de disfunção cerebral subjacente”.
A ideia da ecolalia como distúrbio de linguagem ou de disfunção cerebral é amplamente contestada pelas estudiosas da linguagem especializadas em autismo Laura Sterponi e Jennifer Shankey no artigo Rethinking echolalia. Para as pesquisadoras, ao contrário do sentido construído pelos textos médicos, a ecolalia deve ser abordada como fenômeno interacional, uma vez que “cumpre objetivos comunicativos” e “surge como um subproduto de sequências interacionais discerníveis” (Sterponi; Shankey, 2014, p. 275).
O poema “Desmotivo” é bastante significativo da potência comunicativa que a ecolalia assume em um sujeito lírico que sintoniza diferentes vozes para expressar a si. O referido poema incorpora explicitamente os ritmos e as imagens de “Motivo”, consagrado poema de Cecília Meireles, publicado no livro Viagem, do ano de 1939:
Desmotivo
Fujo de mim mesmo todos os dias.
Se sou alegre ou triste, distante ou próximo,
afetuoso ou insensível,
Nem mesmo eu sei.
Mas, de tudo isso e dentro disso tudo existo,
E uma coisa eu digo:
Sou autista e isso é tudo. (Lucena, 2018, p.13, grifos meus)
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
[...]
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada. (Meireles, 1939, p.10, grifos meus)
As orações condicionais “se... ou se...”, a complexidade do estado de espírito (com gradações imensuráveis entre o alegre e o triste), a expressão das incertezas (“não sei” e “nem mesmo sei”), e a imagem da completude mesmo diante dessa incerteza (“isso é tudo”) são importantes marcas que aproximam Lucena de Meireles, isto é, aproximam o jovem poeta da tradição poética que o formou e o ajudou a compor sua leitura de si e do mundo. No entanto, é importante ponderar algo há tempo defendido pela Literatura Comparada: nenhuma relação intertextual é ingênua ou ausente de intencionalidades. Como afirmou a teórica comparatista Tânia Franco Carvalhal (2001, p. 53-54),
Toda repetição está carregada de uma intencionalidade certa: quer dar continuidade ou quer modificar, quer subverter, enfim, quer atuar com relação ao texto antecessor. A verdade é que a repetição, quando acontece, sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o e (por que não dizê-lo?) o re- inventa.
A re-invenção de Cecília Meireles por Pedro de Lucena já é anunciada no título do poema, configurando “desmotivo” uma espécie de antítese de “motivo”. Ao recontextualizar a voz poética em questão, inserindo-a no universo da expressão autista, o poeta contemporâneo subverte sua referência canônica. Não é necessário que exista um motivo específico, existencial ou transcendental para que o sujeito lírico se manifeste. A manifestação (ecolálica inclusive) é simplesmente parte de sua existência; é sobre ser quem se é. A ecolalia torna-se, assim, importante elemento de comunicação e, mais do que isso, de elaboração estética e de constituição identitária do poeta autista que revisita sua biografia.
Outros poemas com manifestação notável de ecolalia são “Sentido” (integralmente composto por aliterações em “s”), “Ritmo” (personificação do som repetido como um “espírito que habita em mim”), “Aurora real” (com intertextos implícitos que evocam a “Canção do exílio”, poema de Gonçalves Dias, também pertencente à tradição lírica brasileira), diversos poemas que evocam intertextos implícitos da bíblia cristã e emprestam certa musicalidade mítica e primordial e, por fim, “Tempo”, uma reflexão rítmica permeada compassadamente pela onomatopeia “tic-tac”, representativa do relógio enquanto organizador do andamento cotidiano, mas sobretudo do andamento mental do sujeito lírico (o que configura inclusive outro intertexto implícito com “Diário de um detento”, de Racionais MC’s, uma das mais importantes composições do rap brasileiro).
Além dos casos mencionados, há em diversos poemas a presença de recursos de repetição sonora mais ordinários da poesia, como rimas, reiterações, padrões de estrofação, paralelismos sintáticos, que não deixam também de sinalizar a ecolalia como expressão poética de Pedro de Lucena. Ao despatologizar a ecolalia, elaborando-a como recurso estético, mas ao mesmo tempo de observação, organização e significação da própria vida, os poemas de Parabólicas acabam por autocorpografar o corpo autista, reivindicando significados para além da literatura médica e do senso comum.
É justamente por meio de repetições, da presença constante de sons ou de vozes, de poemas ou de músicas que é elaborada a memória pessoal. Assim, são rememorados detalhes de acontecimentos cotidianos, como um encontro fortuito com um muro grafitado, o despertar para o universo religioso, o amor materno ou mesmo os gatos de estimação com quem o sujeito lírico convive, caso de “Quatro gatos pingados”:
Aos poucos e aos pingos
Eles foram chegando
[...]
O primeiro e peralta
É um gato astronauta
[...]
Chegou mais um para habitar
Branco de neve veio para ficar
[...]
Um gato negro apareceu
Todo elegante e misterioso
O pingo preto me envolveu
[...]
Quando tudo parecia acabado
Um felino pequenino
Veio assumir o seu lugar
De chefe dos gatos pingados (Lucena, 2018, p. 31-32)
A obsessão por listas é outro elemento comum entre algumas pessoas autistas. Sua manifestação estética é apontada por Julia Rodas (2018), que a denomina “discretion”, muitas vezes seguida de explicações focadas em pequenos detalhes, recurso denominado “apostrophe”. Elencar objetos ou seres em criteriosos padrões (discriminação) e descrevê-los em detalhes muito específicos e talvez irrelevantes para o pensamento normativo (apóstrofe) é uma forma de organizar e reafirmar a memória. Essa forma, mais uma vez, possui elementos rítmicos, já que pontua regularmente os diferentes itens elencados. No caso, a narrativa da chegada dos gatos na vida biografada ganha o adjetivo “pingados”. Ao mesmo tempo em que, na linguagem informal, “pingado” remete à quantidade pequena e espaçada, também remete ao gotejamento e ao ritmo do escoar da água. Assim, metodicamente, cada um dos animais vai chegando ao seu tempo e tomando lugar na memória afetiva do sujeito lírico.
Se a vida de um menino autista é corpografada ecolalicamente em Parabólicas, portanto, essa autocorpografia se sobrepõe aos textos que reduziram a ecolalia à ausência de sentidos ou de intencionalidade na linguagem. Pelo contrário, o que a obra de Pedro de Lucena nos mostra é que a ecolalia carrega toda potência dialógica da linguagem, permitindo que o autista se comunique consigo mesmo e com os demais seres. É dessa forma que o corpo-parabólica não se mostra isolado ou alienado, ele se comunica com gatos, pessoas, poemas, músicas, grafites, tradição cristã e diversos elementos mais, ampliando as possibilidades de representação do corpo autista.
A alexitimia como fazer poético do inefável
Callum Arthur Brazzó, de Long Sutton, Inglaterra, é autista diagnosticado na vida adulta, aos 21 anos. Aos 27, publicou Movement: performance poetry written down, trazendo à tona sua experiência de infância e de juventude, vivenciando o autismo primeiramente sem e posteriormente com conhecimento da condição. Seu processo criativo dialoga diretamente com a oralidade, uma vez que, em diálogo com o rap, Callum escreve poemas a partir de letras, rimas e improvisos. Como o título do livro sugere, a ideia de movimento é fulcral para o autor. Se entendermos movimento como deslocamento, é importante pontuar que este parte, inevitavelmente, de uma motivação. Nas pessoas autistas, a motivação que desencadeia o movimento costuma ser neurológica (reação a estímulos sensoriais, como luzes e ruídos) e psicológica (reação ao preconceito imposto socialmente). No caso da obra de Callum, destaca-se como motivação do movimento o estímulo psicológico: a busca pelo entendimento e pela expressão dos próprios sentimentos. De acordo com Carneiro e Yoshida (2009, p. 103), “alexitimia é um termo empregado no diagnóstico clínico de pessoas com acentuada dificuldade ou incapacidade para expressar emoções”. Não raras vezes, a alexitimia está presente também no diagnóstico de pessoas autistas, seja por uma dificuldade em compreender as emoções, seja pela dificuldade em organizá-las linguisticamente. No caso de Brazzó, a poesia ocupa esse papel de organização: trata-se de uma poética que toma a alexitimia como ponto de saída para a movimentação no entendimento e na expressão de sentimentos.
No poema “Seguir vivendo”, fica posta a angústia na busca pela expressão: “Como você quer que eu expresse a mim mesmo / Sendo explícito?”1 (Brazzó, 2019, p. 8, tradução minha). O sujeito lírico dirige-se a um interlocutor em tom de protesto. Se este interlocutor pode ser entendido como representação da sociedade e suas cobranças (por “sinceridade”, “transparência”, “espontaneidade”), ao sujeito lírico resta a representação da impossibilidade: como expressar de forma explícita? Embora a coincidência sonora aproxime as palavras “expresse” e “explícito” no poema, elas se tornam antitéticas. Ou seja, a linguagem verbal é uma impossibilidade: não há como se expressar de forma transparente. O leitor sabe, portanto, que está diante de um conjunto de poemas autobiográficos de um sujeito lírico que não conseguirá, de pleno, escrever suas vivências. Daí a utilização de muitas e diferentes metáforas para representar o corpo do sujeito lírico: “busto quebrado”, “esfacelado”, “oceano em fúria”, “maluco dos dreads”, “acéfalo”, “senhor carente de bom senso”, “laranja espremida”. Trata-se, então, de uma autobiografia fraturada, ou, se considerarmos a potência política da incompletude de um corpo linguístico, de uma autobiografia aleijada.
O fato de haver um ponto de partida (alexitimia), um movimento (o rap ou a poesia) e não haver um ponto de chegada (que seria a expressão transparente de si), não significa que não exista jornada e esta não leve a uma maior compreensão da sociedade e de si. Essa compreensão passa, primeiramente, pelo universo mais íntimo: a família. No poema “Vazio”, também escrito aos 11 anos, a figura da mãe é eleita como responsável pelo desequilíbrio do sujeito lírico: “Me sinto tão vazio e tão cheio de ódio”2 (Brazzó, 2019, p. 14, tradução minha). As palavras dirigidas à mãe (na terceira pessoa) são fortes e a classificam como perigosa, autodestrutiva, desiquilibrada ou, metaforicamente, “um vulcão sempre prestes à erupção”. Fica implícita alguma dependência química ao longo da obra que leva às ruínas a mãe e a própria família. Não há na memória da infância uma casa sólida e segura para se resguardar. No desfecho do poema, o sujeito lírico define sua família como “um grupo de desajustados sem líder”3 (Ibid.). A maturidade, no entanto, leva-o à compreensão da trajetória da mãe, reconhecendo um paralelismo com sua própria trajetória de busca por entendimento e pertença. Já ao fim do livro, no poema “Renascimento”, aos 24 anos, o poeta reescreve os versos inaugurais de 13 anos atrás. Agora alternando primeira e terceira pessoa, o sujeito lírico reconcilia ao comparar a memória de duas fases da vida: “Hey, mãe, sinto que a situação mudou / Então aqui está uma nova versão do nosso relacionamento”4 (Brazzó, 2019, p. 192, tradução minha). O lento processo de dissipação do ódio e de recolocação no seio familiar é ressaltado e, como refrão, o sujeito lírico ressalta que agora não é apenas ele, individualmente, que segue vivendo: “E nós seguimos vivendo, vivendo”5 (Ibid.). Prova final da reintegração é a presença de afetuosas fotografias de Callum e sua mãe nos paratextos da obra.
O que auxiliou o sujeito lírico nesse movimento nunca completo, mas que permite o autoconhecimento e a reintegração, não foi qualquer procedimento medicamentoso ou terapêutico no sentido clínico. Foi, na verdade, seu envolvimento artístico com o rap e a poesia. A oralidade e a escrita foram o suporte fundamental para a sobrevivência durante as crises e a possibilidade de uma narrativa de vida que vai da incompreensão à aceitação (dos outros e de si). Inúmeros são os elementos que demarcam a incorporação de uma estética do rap na poética de Brazzó. A abertura do livro com “Seguir vivendo” (no original “Live on”) já demarca o intertexto implícito com “Sing for the moment”, releitura que o rapper estadunidente Eminem faz de “Drem on”, da banda Aerosmith. A letra fala sobre uma “criança problemática” seguir vivendo em meio a um lar desestruturado pela ausência do pai.
Há também, ao longo do livro, diversas referências nominais a Eminem, Tupac e Dr. Dree (a citação direta de nomes de letristas com quem o sujeito cancional se alia ou se opõe é parte importante da constituição de um estilo próprio no rap). Outro elemento que reforça a incorporação do estilo musical é a presença de trechos de autoapresentação, inclusive com a utilização de siglas, reduções e epítetos: “Meu nome é Callum, ok? / Iniciais C.A.B. / O maluco dos dreads / Com louca personalidade / Bem-vindo à minha realidade”6 (Brazzó, 2019, p. 30, tradução minha). Ressalta-se, também, a presença frequente de palavrões e de gírias bastante informais e cotidianas ao longo do livro. Muitos poemas são marcados também pela indicação estrutural de estribilho e refrão, algo que sugere uma origem do poema na performance oral e sua posterior transcrição.
Contudo, o elemento mais profícuo desse diálogo interartístico da poesia e do rap está na “escritura”. Para Jacques Derrida (1995), a escritura diz respeito à articulação da fala e da escrita em movimento (Santiago, 1976, p. 30). Assim, o texto da escritura é um texto sempre aberto, incompleto, que se faz provisoriamente e em processo. Em “Eu sou de EA!” (East Anglia), o sujeito lírico performa o improviso (categoria chamada “freestyle” no rap) em tempo presente contínuo: “Eu sou o verdadeiro trato / E sobrevivo a cada dia / Porque estou rimando no microfone / Você nunca viu algo assim”7 (Brazzó, 2019, p. 23, tradução minha). Não somente a construção verbal “I’m rhyming” propriamente dita, mas o microfone e a sobrevivência remetem ao futuro aberto. O que será dito? O que será vivido? A expectativa da rima também sugere o futuro: algo virá, haverá continuação no fluxo linguístico (“flow”, no vocabulário rapper).
Se estruturalmente a estética rapper oferece os subsídios para a poética de Callum, simbolicamente o rap (materializado nos poemas) também é a sobrevivência e o movimento rumo a um futuro possível. Em “Me salva”, a escritura sugere remédio em momento de crise: “O mundo é frio / Minhas histórias, encobertas / Escondidas na minha alma / Não posso me controlar / Preciso me medicar / Então escolho cantar”8 (Brazzó, 2019, p. 28, tradução minha). O tratamento pela arte é tão essencial que o sujeito lírico chega a descrever o rap figurativamente como lugar: “O rap é também o lugar onde firmo a raiva”9 (Brazó, 2019, p. 81, tradução minha). Desse modo, esse lugar é um lugar de libertação, de extravaso, de expressão daqueles mesmos sentimentos difíceis de expressar para um autista alexitímico. Trata-se então de um lugar seguro, um abrigo em meio à desestrutura do mundo – algo bastante significativo para quem se representava deslocado e sem um lar seguro na memória da infância.
O corpo do sujeito lírico de Movement é, portanto, um corpo inicialmente desabrigado, atravessado pelo caos familiar e social, que sente e não consegue se expressar, mas encontra no rap e na poesia sua casa, onde pode libertar a memória de suas vivências para então se apaziguar. Os últimos poemas, já posteriores ao diagnóstico, são marcados por autoconhecimento e autoaceitação, como no desfecho do poema “Sem nome” (já não há mais problemas com o inefável): “Deixe-me dizer isso / Em voz alta / Eu tenho autismo / Mas há muito / Muito mais / Em mim”10. (Brazzó, 2019, p.170, tradução minha). Autocorpografar um corpo autista, então, é autocorpografar um corpo inapreensível e inominável. Se a literatura biomédica clássica buscou justamente apreender o corpo autista e defini-lo em um termo ou um conjunto de sintomas, Brazzó desconstrói isso para nos mostrar que é impossível. O corpo autista é um corpo em movimento, tal como a metáfora da luz dos cometas: quando visto, já não é.
A autocorpografia não é sobre si
Impossível escrever um texto sobre autocorpografias autistas sem refletir sobre o prefixo morfológico “auto-“ e sua relação com a construção de uma noção de autismo. É difícil e talvez irrelevante remontar a uma genealogia exata na história do autismo, mas possivelmente Eugene Bleuler tenha utilizado o termo como uma adaptação do conceito de “autoerotismo”, oriundo da psicanálise (Lima; Fontenele; Gaspard, 2018). Mesmo que não fosse uma classificação de sujeitos, e sim de comportamentos, o termo estava carregado pela ideia do indivíduo inapto para a alteridade. Mais adiante, com a utilização do termo “autismo” por Leo Kanner e Hans Asperger (Tamanaha; Perissinoto; Chiari, 2008), agora já com um sentido diagnóstico, concretizava-se a textualização desses corpos como “ensimesmados”, “fechados”, “trancafiados”, “incomunicáveis” ou “inaptos à integração comunitária”. As representações do autismo em textos científicos e midiáticos da segunda metade do século XX contribuíram para a disseminação dessa mesma visão.
Atualmente, o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), em sua quinta versão, classifica o autismo como um “transtorno de desenvolvimento” que se caracteriza em dificuldades em três esferas: comunicação, interação social e comportamentos. Como assinala a psicóloga Amanda Caitité (2017), a definição psiquiátrica do autismo já o condiciona a uma marca depreciativa quando distancia aquilo que se é daquilo que supostamente se deveria ser.
Com o surgimento e a popularização da teoria da neurodiversidade, sobretudo devido aos esforços de nomes como Jim Sinclair, Judy Singer, Nick Walker, Steve Silberman e Temple Grandin, dos anos 1990 para cá houve um movimento que chama atenção: a publicação crescente de autobiografias escritas por pessoas autistas e seu sucesso entre o público leitor. Para Ian Hacking (2009), esse fenômeno é importantíssimo não exatamente pela partilha de experiências e descrições do autismo “a partir de dentro” (jargão que foi bastante repetido nas últimas décadas), mas sim pelo estabelecimento de uma “linguagem comum” entre a comunidade autista para que fosse possível nomear o que até então não possuía formas linguísticas correspondentes. Para além da importante criação dessa “linguagem comum” , é imprescindível refletir sobre a forma que esses textos foram absorvidos pelo mercado editorial.
Como já advertia o sociólogo Stuart Hall (2003) a respeito dos rumos do multiculturalismo, o sistema capitalista é implacável e voraz, capaz de engolir as diferenças e transformá-las facilmente em mercadoria. Parte considerável das autobiografias publicadas pelas grandes editoras possuem um forte apelo comercial: elas apresentam o autismo como uma terrível tragédia individual que deve ser superada pelo esforço e pela criatividade. Assim, a pessoa que escreve (e seu sucesso editorial) seria a prova irrefutável de que todos podem vencer no fantástico reino da meritocracia.
Não se trata aqui de condenar os autores desses textos, pois são também vítimas desse processo, já que só são publicáveis (e consequentemente assalariados no mundo editorial) quando correspondem a determinadas expectativas sobre o autismo. Em suma, a crueldade desse movimento é assustadora, pois se utiliza de algumas vozes autistas para legitimar a mesma visão redutora da pessoa autista iniciada pelas áreas médicas no início do século XX: um sujeito aprisionado ao seu corpo. A autobiografia autista best-seller seria, assim, um gênero paradoxal: alguém incapaz de comunicar que se comunica. Daí o fetiche de mercado e o interesse de um amplo público pela questão.
Quando se percebe a incorporação das autobiografias tradicionais pelo capitalismo contemporâneo, torna-se fundamental o estudo de outras narrativas que pessoas autistas produzam sobre si, principalmente aquelas à margem do mercado, como performances, instalações, manifestos, desenhos, pinturas, esculturas, vídeos, livros de editoras independentes, fanzines, etc. A poesia torna-se assim espaço bastante relevante, pois não é rentável, utilitária ou mesmo bem quista por um vasto público leitor. Trata-se de uma insurreição contra a objetificação da linguagem. Em última instância, a poesia trata da busca pelo prazer mais corpóreo e urgente: o prazer sensorial. Como afirmou a poeta brasileira Conceição Evaristo (2023), “a poesia inicia sempre pelo corpo”. E acrescento que é no corpo que a poesia também termina, pois seu prazer advém da combinação inusitada de sons, de imagens ou de sentidos, sendo vivida assim no diafragma, nos ouvidos, nos olhos, na pele…
Conforme reflete a artista e filósofa Ana Cândida Carvalho (2023, p. 76), “A maquinaria de dominação sobre as manifestações artísticas também impõe seus ditames à produção criativa autista”. Nesse sentido, aponta que a construção de subjetividades para além dos limites impostos não somente traz novas possibilidades de expressão, como se configura exercício ético. Criar, nesse sentido, é recriar-se e posicionar-se criticamente frente ao mundo.
Ao escolher a poesia para rememorar suas próprias vidas, Pedro de Lucena e Callum Brazzó inscrevem seus corpos de forma subversiva na rede de textos que define o autismo. Seus corpos não são só corpos que lembram, que falam, que comungam uma “linguagem comum”. São também corpos de desejo, são corpos que sentem e que têm o mesmo direito ao prazer estético que qualquer outro. Compreender seus poemas de traços autobiográficos como autocorpografias, segundo a conceituação de Adelaine LaGuardia (2014), revela-se então uma postura de pesquisa bastante promissora, já que a autobiografia foi incorporada pelo sistema capitalista como fetiche do mercado editorial e não é capaz de dar conta da constituição e da desconstrução que as pessoas trans e autistas precisam fazer de seus corpos para que reivindiquem suas identidades, mesmo que posicionais e estratégicas (Hall, 2014).
Se pensarmos em termos narratológicos, as obras de Lucena e Brazzó possuem enredo oposto às autobiografias comerciais. Nestas, o autismo é o elemento complicador, o nó narrativo, cujo desenlace é a sua superação pelo personagem protagonista. Já nos livros aqui analisados, o nó narrativo está nas barreiras sociais e na falta de pertencimento impostos ao protagonista. O reconhecimento e a aceitação do autismo são justamente o desenlace que propicia um melhor entendimento de si e uma melhor qualidade de vida ao autista. Não à toa, ser autista é o suficiente para as questões identitárias de Parabólicas (“sou autista e isso é tudo”). Também não à toa, a poesia apresentada como “remédio” em Movement leva ao entendimento do autismo e ao alinhamento com a teoria da neurodiversidade, a qual concebe o autismo não como patologia, e sim como parte da pluralidade humana.
Ao grafar seus próprios corpos, contudo, Lucena e Brazzó não falam apenas de si. Diferente da autobiografia, a autocorpografia não responde ao impulso narcísico de nosso tempo. Quando um corpo trans ou autista se inscreve na linguagem, já o faz sob disputa dialógica. Como assinalam Milton e Bracher (2013), os autistas falam, mas dificilmente são ouvidos. Os textos médicos seguirão se sobrepondo às autocorpografias, pois enunciam seu discurso a partir de um locus institucional privilegiado. Autocorpografar, portanto, para esses corpos sempre será atuar nas margens, revoltar-se em uma luta desigual contra a ordem do discurso biomédico (Foucault, 2010). Quando o fazem, portanto, não o fazem para se autopromover, já que serão alvo de taxação e crítica, pois menos “metodológicos”, “científicos”, “evidenciados”. E se esses corpos aceitam ocupar esse lugar pela revolta contra os signos textuais que os oprimem, é porque não lutam somente por si. Ressignificar o autismo na autocorpografia, portanto, é ressignificá-lo para benefício de todos os corpos autistas, e não do corpo individual do autor.
Em sua tese de doutorado, Amanda Caitité (2017, p. 43) traz uma das mais pertinentes definições de autismo, que ressalta os laços entre as diferentes pessoas no espectro: “[...] num mesmo espectro, os autistas não verbais compartilham com os verbais o desenvolvimento de um uso singular da linguagem, da inteligência e da sociabilidade, e colocam como desafio uma ressignificação do que vem a ser essas dimensões da vida.” Os usos da linguagem não são iguais em Pedro de Lucena e Callum Brazzó, em autistas não-oralizados ou oralizados, em autistas atravessados por diferentes experiências históricas e culturais. O que há de comum entre todos eles, no entanto, é compartilharem experiências de exclusão pela linguagem. Seus modos de comunicar, de pensar ou de socializar, diferentes entre si, foram em algum momento classificados como ausência de linguagem, ineficiência de linguagem, imprecisão de linguagem, baixa funcionalidade de linguagem. Por isso, as autocorpografias em questão atravessam também os corpos das demais pessoas autistas. Quando encerra o seu livro, Callum Brazzó o dedica aos lutadores, segregados, inseguros, desvalorizados, sobreviventes e aos que buscam. Em suma, poderíamos dizer: aos autistas, com seus corpos sobre os quais textos foram impostos, mas que seguem vivendo, inquietos e que persistem a buscar. O que encontraremos não importa, interessa é seguirmos juntos e em movimento.