Os textos selecionados para comporem este segundo número da revista Cadernos Franco-Latino-Americanos de Estudos da Deficiência, mesmo que não propositalmente selecionados com esta motivação, refletem um movimento de crescente transformação na produção acadêmica do campo: pesquisas realizadas por ou com pessoas com deficiência. Os artigos marcam as singularidades das produções de pessoas que vivem a “experiência encarnada” da deficiência ou da surdez, e/ou ao menos são “letradas” nos “saberes da deficiência” (o conhecem “de dentro”) e contribuem para as lutas anticapacitistas.
O número oferece um conjunto de artigos acadêmica e politicamente posicionados que refletem sobre as intersecções e tensões entre as categorias deficiência, identidade e (neuro)diversidade em um campo de disputas particularmente marcado pelas corporalidades, sensorialidades e socialidades organizadas contra toda forma de patologização. Neste sentido, a linguagem e a disputa de nomeações e categorias tornam-se ferramentas fundamentais para a desconstrução de concepções biomédicas e/ou colonizadoras nesse campo.
A grande presença de textos sobre a temática do autismo e da neurodiversidade recebida pela revista, das quais algumas foram selecionadas para este número, com certeza reflete a crescente visibilidade do tema na cena pública e nas redes acadêmicas de língua portuguesa (Aydos, 2018), espanhola (Cruz Puerto e Sandin Vazquez, 2024) e francesa (Chamak e Bonniau, 2014 ; Lefebvre, Chown, Martin, 2023) nos últimos anos. A condição nomeada “autismo” nos registros de Kanner na década de 1940, já visto como o comportamento de pacientes esquizofrênicos ou “uma desordem psiquiátrica da infância”, hoje é objeto de disputas entre os que a entendem como uma desordem do desenvolvimento, aqueles que a definem como uma deficiência, e aqueles que o interpretam como uma diversidade neurobiológica.
Em termos gerais, os usos de uma categoria dentro de tais nomenclaturas (desordem, transtorno, deficiência, neurodiversidade) carregam diferentes concepções sobre as possíveis causas do autismo, suas características e manifestações físicas, intelectuais, sensoriais e atitudinais. Eles também fornecem informações sobre as posturas e abordagens dos experts para com essas pessoas e as pautas de ativistas em nome delas. Este aumento de diagnósticos conta também com uma positivação do “Espectro”, impulsionada em parte por um crescente número de séries e autobiografias (Hacking, 2009), mas também pelo crescimento do Movimento da Neurodiversidade no mundo.
O surgimento do termo “neurodiversidade” no final da década de 1990 remete originalmente ao trabalho da socióloga e self advocate Judy Singer1. Em Singer, a neurodiversidade sugere que o significado-chave do “espectro autista” está em seu apelo e antecipação de uma política de “diversidade neurológica”. O “neurologicamente diferente”, para autora, representaria “um novo acréscimo às categorias políticas conhecidas de classe/sexo/raça” e ampliaria “as percepções do modelo social da deficiência” (Singer, 2016, s.p.), assim como posicionaria esta camada da população junto às minorias sociais nas lutas por reconhecimento identitário.
Neste número da revista Cadernos, Luana Adriano e Valéria Aydos retomam este debate tensionando a produção acadêmica sobre autismo e neurodiversidade através de suas participações em projetos com autistas do Sul Global, produtores de conhecimento acadêmico-ativista sobre o tema. Em um outro artigo, a reflexão da terapeuta ocupacional autista Marjorie Désormeaux-Moreau sobre as tensões e disputas entre “conhecimentos sobre autismo” e “saberes autistas” segue também esta linha, e explicita as situações de “injustiças epistêmicas” e “neurodiversidade lite” na Academia, quando da invisibilização do conhecimento autista.
A temática do autismo nesta edição conta também com o artigo de Gustavo Rückert, pesquisador autista que mostra como a apropriação da escrita autocorpográfica, a partir da livre manifestação de demandas sensoriais do corpo autista na poesia, oferece uma alternativa à ideia do autismo como auto isolamento. A abordagem de Rückert permite reescrever o corpo autista como um corpo em constante movimento, inapreensível em sua plenitude pela linguagem, dado seu engajamento sensorial com os outros corpos no mundo.
Dois outros artigos completam esta edição. Marie Cholley-Gomez, Sébastien Ruffié, Gaël Villoing e Sylvain Ferez analisam os percursos de vida e de cuidados e as necessidades da população surda e com deficiência auditiva no arquipélago de Guadalupe, com base em entrevistas em profundidade com as pessoas em questão. Alguns dominam a linguagem de sinais e se autodefinem como surdos, mas outros que se tornaram surdos ou deficientes auditivos ao longo da vida não se definem dessa forma. Os autores mostram que essas pessoas enfrentam as maiores dificuldades para exercer sua cidadania, informar-se sobre assuntos atuais, realizar procedimentos administrativos ou ter acesso à saúde.
Jame Alejandra Rebolledo-Sanhueza, Álvaro Besoain-Saldaña, Jorge Muñoz-Campos e Constanza López-Radrigán analisam o desdobramento das corporalidades e as alianças tecidas entre aqueles que participaram da marcha da deficiência de 3 de dezembro de 2019 na Região Metropolitana do Chile. Os autores baseiam sua análise em observações e fotografias tiradas durante o evento, mostrando que foi um lugar onde a cidadania pôde ser expressa, graças a uma combinação de apoios humanos e não humanos que facilitaram a movimentação das pessoas envolvidas no espaço público.
Assim, os artigos reunidos nesta segunda edição de nossa revista, como um todo, oferecem várias contribuições para despatologizar e alimentar as lutas anti-capacitistas. Essas contribuições dão mais valor os conhecimentos incorporados e situados. Elas também desafiam os cientistas envolvidos na produção de conhecimento no campo dos estudos da deficiência em seu papel de aliados na luta para construir um mundo no qual ninguém seja privado de sua condição humana plena.