Apresentação
Há tantas injustiças, grandes e pequenas, que afetam pessoas autistas. Nenhuma delas está desvinculada das injustiças que acontecem com as outras. Nenhuma delas é única. (...) Minha tarefa aqui é escalar os penhascos da linguagem e gritar para vocês o padrão de uma ou mais injustiças.
Mel Baggs, Up in the clouds and down in the valley: my richness and yours (2010, parágrafo 1).
Mel Baggs está sentade de frente para a câmera no centro do enquadramento. É uma pessoa branca, gorda,1 tem um cabelo preto curto e veste uma roupa preta. O quarto está escuro e à esquerda há uma estante de livros. Sua boca e seus olhos estão levemente entreabertos. À direita, uma mesa. Mel tem um teclado em seu colo e aparece com as mãos sobre as pernas, permanecendo imóvel enquanto uma voz de robô — uma tecnovoz — começa a falar, acompanhada pela legenda amarela:
As pessoas me perguntam com frequência como é ser considerade retardade, ou estar “prese em um corpo que parece retardado”. (...) Este vídeo vai ser sobre o que significa ser viste como “retardade”, mas possivelmente não vai ser o que você pensa que é. (Baggs, 2006a, 00:01-00:43)
Baggs usa uma voz sintética para se comunicar: o som que ouvimos ao fundo é uma leitura digital das palavras que tecla no computador. Na próxima cena, a câmera mostra, em seu tornozelo, uma contenção marrom, de couro e metal, que era amarrada às crianças para que não se levantassem da cama durante a noite nas instituições de confinamento por onde passou. A voz eletrônica declara: “Quando você é amarrade ao lado de alguém, vocês estão no mesmo barco. Rótulos diagnósticos são usados pela equipe somente para dividir e confundir” (Baggs, 2006a, 01:22-01:33). Mel prossegue, então, dizendo que pedirem que se sinta ofendide por ser chamade de “retardade” e se distancie dessa palavra o quanto antes é o mesmo que pedirem que escolha uma categoria médica em vez de uma categoria social, renunciando os laços com as pessoas com que foi institucionalizade e rebaixando a si e a todas elas:
Eu sou cognitivamente deficiente. Isso significa que o jeito que eu penso e aprendo não é um dos jeitos que a sociedade em que eu vivo planeja. (...) Pelos padrões da sociedade em que eu vivo, algumas das coisas que eu aprendo mais devagar são classificadas como atrasos de desenvolvimento. (Baggs, 2006a, 01:55-02:37)
A voz sintética afirma que é certeira a descrição do seu aprendizado como mais lento para algumas coisas, se tomado de acordo com certos padrões. Diz que, apesar de discordar do uso excludente que o retardo toma e de aprender outras coisas mais rápido que o usual, não sabe qual é o problema com a lentidão: “só a ideia de ser devagar em algumas coisas não deveria ser grande coisa” (Baggs, 2006a, 04:08-04:14). “Parecer retardade” para as outras pessoas pode, de acordo com Baggs, querer dizer algumas coisas. Seu corpo se movimenta quando as pessoas não esperam e não se movimenta quando esperam. Suas reações são pouco usuais: “a estrutura do meu corpo, especialmente meu rosto e algumas outras partes do corpo, lembra algumas das estruturas corporais que os médicos parecem amar associar a isso que eles chamam de ‘retardo mental’” (Baggs, 2006a, 04:48-05:02). Elu escreve que esse é o modo como seu corpo se mexe, e não o sente como uma prisão mais do que a maior parte das pessoas sente.
Isso leva Mel a pensar no conceito de humanidade. Para muitos, incluindo o australiano Peter Singer, como aponta Baggs, pessoas cognitivamente deficientes não são consideradas pessoas por inteiro. De acordo com esse filósofo da bioética, pessoas que não conseguem se conceitualizar existindo de uma forma específica devem ser classificadas como “não-pessoas” — entre elas, as pessoas autistas: “Por essa definição, eu passei grande parte da minha vida como uma ‘não-pessoa’” (Baggs, 2006a, 08:17-08:24), anuncia a tecnovoz legendada. Baggs enxerga nessa definição de ausência de humanidade o cerne da violência contra a deficiência cognitiva, em um mundo onde pensar como a norma é ser uma pessoa de verdade. Como sua objeção não é que as pessoas vejam seu corpo e seu aprendizado como “retardados”, então o problema está no que as pessoas pensam que ser “retardade” significa.
Seguindo os questionamentos iniciais propostos no video About being considered “retarded” (Sobre ser considerade “retardade”) por Mel Baggs, ativista autista estadunidense, este texto discute as concepções normativas do autismo como déficit e, no limite, como ausência de humanidade2. Aliando sua produção a um referencial feminista, queer e dos estudos críticos da deficiência, começamos investigando as relações entre as tecnologias do gênero, da raça e da sexualidade com os transtornos mentais, passando pela conexão entre o diagnóstico de autismo e o capitalismo contemporâneo. Em seguida, damos destaque a uma descrição crítica da racionalidade masculina, que traça os limites dentro dos quais o indivíduo moderno é engendrado como ideal regulatório na teleologia normativa das teorias psicológicas do desenvolvimento e materializado pelas instituições disciplinares, enfatizando suas reverberações nos discursos e práticas em torno do autismo. Percorremos as controvérsias a respeito da independência na articulação entre as tecnologias da escrita e as pessoas autistas, contrapondo-a à noção de interdependência elaborada pelos estudos críticos da deficiência. Em conclusão, buscamos fazer ouvir afirmativas contra-hegemônicas da percepção autista, retornando principalmente ao trabalho político de Mel Baggs para ressaltar a subversão do movimento da neurodiversidade no interior das categorias médicas e psicológicas que desumanizam o autismo.
Antes de prosseguir, vale ressaltar que, como se pode notar, recorremos ao uso da linguagem neutra durante o texto para fazer referência a Baggs, que era uma pessoa não-binária e preferia ser chamade pelo pronome “they”, em inglês, traduzível para o português como “elu”. Para as palavras generificadas, utilizamos “e” em vez de “a” ou “o”.3 Além disso, embora a maior parte dos textos e vídeos aqui citados tenham sido assinados pelo nome Amanda Baggs, possivelmente mais conhecido, nos referimos sempre, ao longo do artigo, à autoria como sendo de Mel Baggs, como passou a se chamar.4 Suas proposições, com a preferência pelo pronome neutro e a escolha de um novo nome, são também uma intervenção linguística: obrigam-nos a redimensionar e tornar outra a linguagem. Como veremos, isso é parte do procedimento do seu trabalho questionador das normas de gênero e racionalidade.
Nesse percurso, colocamos sua produção em diálogo com outros trabalhos — como o de Paul B. Preciado, Gustavo Henrique Rückert e Erica Burman— não para, assim, podermos eventualmente validar, com argumentos acadêmicos institucionalizados, o que Mel Baggs disse e/ou escreveu, mas para, pelo contrário, insistir nos pontos em que sua produção nos convida, com sua gestualidade e sua musicalidade próprias, a ir além do que já consta na literatura existente. Esse movimento nos permite construir uma análise crítica e interdisciplinar sobre a linguagem normativa a respeito do autismo que tenha como eixo a singularidade da sua intervenção no cruzamento entre diferentes campos das ciências humanas e sociais, especialmente pelo modo como sua abordagem sobre a neurodiversidade pode interrogar e enriquecer a psicologia, o feminismo e os estudos da deficiência.
Gênero, raça e sexualidade na tecnologia dos transtornos mentais
Os escritos de Mel Baggs, como a introdução pode nos mostrar, são pautados pelo modelo social da deficiência (Mello, 2010; Mingus, 2017; Alves, 2020). Nele, a incapacidade não é vista como uma condição inerente aos corpos, mas como uma categoria e uma experiência produzidas a partir da relação estabelecida entre esses corpos e um espaço e uma linguagem que os incapacitam (Baggs, 2010) — o que inclui as instituições e as prerrogativas médicas e psicológicas.
De maneira análoga, décadas atrás, a crítica feminista estadunidense Teresa de Lauretis (2019) definia o gênero como uma categoria relacional que é produto e processo de diferentes tecnologias sociais. Essas tecnologias, tanto materiais quanto semióticas, são nossas práticas discursivas institucionalizadas e cotidianas. É que, como a deficiência, o gênero “não é uma condição natural” (De Lauretis, 2019, p. 126) ou que possa ser reduzida à biologia. São as tecnologias políticas, artísticas e científicas, entre outras, que engendram experiências pela construção de novas relações entre entidades específicas, produzindo efeitos concretos em corpos e comportamentos. Elas fabricam o nosso pertencimento às categorias rígidas, assimétricas e mutuamente excludentes de gênero: o masculino e o feminino. Resta nos debruçarmos sobre como funcionam alguns de seus mecanismos.
Os manuais de psicodiagnóstico são uma das diferentes formas que essas tecnologias podem tomar. Assim como podemos considerar, com De Lauretis (2019), que nossas experiências são articuladas de modo bastante naturalizado ao corpo biomédico pela tecnologia do gênero através da noção de “diferença sexual”, a antropóloga brasileira Fabíola Rohden (2009) escreve que, a partir de sua terceira edição, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), produzido pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), marca a passagem de uma abordagem psicossocial — influenciada principalmente pela psicanálise — para uma concepção estritamente biológica dos transtornos mentais. De Lauretis (2019) e Rohden (2009) consideram então que tanto o sexo quanto o transtorno mental não são dados, mas produtos de uma materialização naturalizante e biologizante realizada por um conjunto de tecnologias — que envolvem também atravessamentos em termos de raça (Silva, 2019) e sexualidade (Foucault, 2015).
Como apontam as psicólogas brasileiras Regina Oliveira e Maria da Conceição Nascimento (2018, pp. 136-137), no começo do século XX, expoentes da psiquiatria no Brasil, partindo do positivismo europeu, vão recorrer à biologia para fabricar uma explicação racial para questões urbanas, econômicas e políticas postas pelas transformações no modo de produção capitalista. Embarcada em uma política higienista rumo a um “aperfeiçoamento da raça” para o “progresso nacional”, a psiquiatria foi um dos principais vetores de consolidação do racismo científico no Brasil e no mundo, apoiando-se em teorias da degeneração e da hereditariedade para estimular internações psiquiátricas, além de práticas eugênicas como a esterilização de pessoas negras e mestiças. A artista e filósofa brasileira Denise Ferreira da Silva (2019) discute como essa tecnologia racial criou justamente, com a ajuda da filosofia europeia e da antropologia colonial, fundando-se nos pilares modernos da separabilidade, da determinabilidade e da sequencialidade, uma versão temporal da diferença cultural, descrita como contraste entre uma raça (branca) mais civilizada e desenvolvida e outras raças (não brancas) mais primitivas e atrasadas (ou seja, retardadas), tanto em sentidos sociais quanto evolutivos.
No caso do DSM, o abandono da perspectiva psicossocial acarretou, pelo menos desde 1980, o aumento no número de transtornos e uma nova biologização da experiência humana a partir de uma aliança crescente entre psiquiatria, neurociência e indústria farmacêutica. Diferentes agentes sociais ganham a partir de então a importância de conferir legitimidade às novas categorias que foram sendo fabricadas, entre eles os pesquisadores (como um lugar a ser ocupado prioritariamente por homens heterossexuais, brancos, entre outros marcadores sociais). A eles cabe a criação de um novo mercado e de novos consumidores: “Nesse processo, que começa com a definição das classificações e diagnósticos, paralelamente vai se ‘criando’ a doença, o tratamento e a população a ser tratada” (Rohden, 2009, p. 103). Entre essas criações, a “Disfunção Sexual Feminina” chama a atenção de Rohden (2009, p. 102) como “um caso clássico de tática de promoção de uma nova doença pela indústria farmacêutica e outros agentes da medicalização como jornalistas, profissionais de saúde, empresas de propaganda e relações públicas, etc.”.
Partindo das novas patologias sexuais, Rohden (2009) encontra, tanto nas pré-concepções sobre a sexualidade sustentadas pelas pesquisas quanto no que é transmitido pelas práticas sociais quando novos diagnósticos e tratamentos estão sendo fabricados, um movimento de produção e reprodução de estereótipos de gênero. Encontra ainda uma perspectiva eminentemente masculina nessas formulações, por definirem a sexualidade feminina como misteriosa e difícil de ser estudada, sempre pressupondo a heterossexualidade. As técnicas de materialização dos transtornos mentais — como a internação, a esterilização, os psicofármacos e o DSM — aparecem ao mesmo tempo como criaturas e criadoras das nossas experiências gendradas, racializadas e sexuais. Isso quer dizer que a tecnologia do transtorno mental está intimamente conectada às tecnologias do gênero, da raça e da sexualidade.
O filósofo queer espanhol Paul B. Preciado (2013) chega a apontar uma associação genética entre gênero e transtorno mental na contemporaneidade: a noção de autismo como conhecemos foi criada na mesma época e no mesmo local — Universidade Johns Hopkins — em que o conceito médico de gênero estava sendo elaborado pelo psicólogo e sexólogo neozelandês John Money para redesignar os corpos dos bebês interssexuais em direção à masculinidade ou à feminilidade normativas. A classificação de “Autismo Infantil” foi lá firmada por Leo Kanner, um psiquiatra austríaco radicado nos Estados Unidos. Anos depois, outro psiquiatra austríaco, chamado Hans Asperger, definiu o que intitulou “Psicopatologia Autista”. Não pretendemos esgotar, aqui, as complexas relações entre Kanner e Asperger, tampouco tratar de questões ainda assim relevantes como a desassistência nas relações entre gênero e autismo. Queremos apenas ressaltar que as caracterizações que eles forjaram entre as décadas de 1940 e 1950 levam Preciado (2013) a ver aí o nascimento da nova enfermidade, do novo corpo incapacitado da produção pós-fordista, em que as competências cognitivas e relacionais se transformaram em grandes fontes de valor — o que fez com que o que hoje se tornou a constelação “autismo-síndrome de Asperger” só pudesse começar a se consolidar neste momento. Eis o que Preciado (2013, 1:21:20-1:22:50) encontra nessas descrições:
Primeiro, rechaço ou ausência da capacidade linguística — com o que está claro que o autista não poderá ser um produtor semiótico; movimentos de autoestimulação rítmicos que põem em perigo ou que impossibilitam todo contato social do autista; transtorno comunicativo que faz com que o enfermo não estabeleça contato visual apto para a interação social — e pensar que as formas de produção que estão sendo postas em marcha a partir dos anos 50-60, essas formas de produção cognitiva têm a ver com a comunicação social (...); e ademais é solitário, ilhado e não emocional. (...) De modo que o autista aparece não somente como uma patologia cognitiva, senão como uma patologia do social, do econômico e como o limite mesmo do político.
Já começamos a perceber na apresentação deste texto como Mel Baggs (2006a) burla essa descrição através da escrita, além de mobilizar outra noção política de laço social que não a dos diagnósticos da indústria médica. Discutiremos adiante o que elu vai dizer sobre a concepção das pessoas autistas como pessoas que vivem em um mundo só delas. Por enquanto, importa marcar que: a criação de diagnósticos e consumidores para as indústrias dos transtornos mentais toma a partir daí grande importância; as categorias psi não são neutras; o autismo surge como essa espécie de limite do modo de produção sócio-cognitivo.
Racionalidade masculina e instituições modernas
No capitalismo contemporâneo, então, “o desejo sexual e a doença compartilham a mesma plataforma de produção e cultivo: sem os suportes técnicos, farmacêuticos e midiáticos capazes de materializá-los, eles não existem” (Preciado, 2018, p. 56). Preciado (2013) enxerga, desde meados do século XX, o nascimento do autismo como a patologia de uma nova era. Mas a crítica que Rohden (2009) elabora à perspectiva heterossexual masculina na própria concepção dos manuais de diagnóstico dos transtornos mentais levanta ainda, na companhia de Mel Baggs (2006a), outra questão sobre as relações entre gênero e autismo além de um mesmo momento e local de nascimento — posta pela própria ideia de sociabilidade que delineia as concepções do autismo.
É que a produção teórica é outro lugar em que a tecnologia do gênero trabalha seus mecanismos (De Lauretis, 2019) — e aqui vale ressaltar as teorias psicanalíticas e da psicologia do desenvolvimento, já que é também através das prescrições estabelecidas por pesquisas nesses campos que o autismo pode vir a ser patologizado, como sugere Baggs (2006a), como um atraso no desenvolvimento, um retardo mental e uma ausência de humanidade. Não se trata de generalizar as críticas a tais abordagens, tomando a parte pelo todo — reconhecemos a presença de vozes dissonantes no interior dessas mesmas teorias. Nossa proposta é, antes, tomar Mel Baggs como guia para problematizar algumas produções pontuais no campo psi posicionadas normativamente em relação ao gênero e/ou ao autismo.
Passemos, primeiramente, por como psicanalistas ou uma determinada psicanálise produziram (e seguem produzindo) leituras teóricas marcadas por uma matriz hierárquica de gênero — carregando muitas vezes efeitos desenvolvimentistas. A psicanalista estadunidense Jessica Benjamin (1987), ao analisar as relações de dominação no Complexo de Édipo e as crescentes preocupações com o narcisismo ao redor da década de 80, nota como algumas leituras da teoria psicanalítica são especialmente preocupadas com a diferença, a separação e a distância, criando com isso formas particulares de individualidade e liberdade vistas a partir da experiência masculina. Essa separação acontece pelo repúdio do vínculo (associado com a dependência à mãe) e da feminilidade através da sua dominação, que culminará paradoxalmente em uma socialização de sucesso, na autonomia do ego e na independência em relação ao ambiente. Assim nasce o homem social articulado à racionalidade instrumental masculina, ou seja, à materialização da razão no mundo social ocidental. A autora qualifica essa racionalidade como masculina porque, nessa versão linear da individualização, apenas o polo masculino comporta o sujeito. Seguindo essa teleologia psicanalítica (de inspirações cartesianas e piagetianas), Benjamin sublinha como o feminino é localizado em um ponto retardado, desumanizado e objetificado: “Um sujeito não é mais alguém que nutre os outros, que se identifica com os outros. Ele é acima de tudo definido por sua oposição a um mundo de objetos, natureza, mulher, tudo que é outro” (Benjamin, 1987, p. 236, grifo da autora).
Isso nos leva à criação histórica dessa racionalidade masculina, que coincide, como mostra Silvia Federici (2017), com a consolidação do capitalismo mercantil europeu. A filósofa feminista italiana afirma que os conceitos modernos de Estado e indivíduo são em grande parte tributários da destruição em larga escala de toda uma cultura comunitária entre as mulheres sob a acusação de bruxaria, que eram mortas ou punidas por carregarem outra relação com os objetos, a natureza e o conhecimento. O mesmo ocorreu com os povos racializados, acusados de feiticeiros, que vinham sendo colonizados, escravizados, catequizados e exterminados. No século XVII, foi também em detrimento dessa relação mágica com o mundo que os filósofos René Descartes e Thomas Hobbes, francês e inglês respectivamente, formularam a razão como controle sobre o corpo, a natureza e o feminino. Esse controle racional se daria pela submissão a uma autoridade maior, pela subjugação objetificante do mundo ou pela dominação mental de seus próprios instintos. Muito similar à crítica de Jessica Benjamin (1987), que chega a apontar que o médico austríaco Sigmund Freud, ao inventar a psicanálise, não pôde escapar do mesmo ideal de autonomia e do mesmo imperialismo em relação à natureza que carregavam as concepções racionalistas de Descartes.
O indivíduo disciplinado que o racionalismo imaginou teve que esperar ao menos mais dois séculos, com o surgimento dos Estados-nação e do capitalismo industrial, para se consolidar nas instituições modernas (Federici, 2017), que se tornaram locais privilegiados para a materialização do dualismo sujeito-objeto fundante da racionalidade masculina. Márcio Alves da Fonseca (2014), filósofo brasileiro, em um texto a respeito dos escritos do filósofo francês Michel Foucault, afirma que as instituições disciplinares nascentes no século XIX são tecnologias de objetivação e subjetivação que visam à fabricação do indivíduo moderno. Nessa perspectiva produtiva, se uma das instituições que surgem nesse período é o hospital psiquiátrico, espaço de reclusão e tratamento onde historicamente os corpos autistas foram e são medicalizados, a criação de um doente mental é o sucesso de uma internação, pois que a doença mental quando acionada põe em funcionamento os instrumentos disciplinares e confessionais que a produziram e concretiza suas funções. Através da objetificação disciplinar e da subjetivação confessional, a patologização funciona como um procedimento de individualização — é por isso que Mel Baggs (2006a) prefere reapropriar-se do “retardo mental” como uma categoria social, e não como uma categoria médica, cujo diagnóstico serve para separar mais do que vincular as crianças que eram contidas na cama durante a noite nas instituições que percorreram sua vida. Baggs disputa o termo, colocando em xeque narrativas de exclusão e patologização de corpos como o seu. A despatologização e a coletivização da experiência podem levar à sua transformação.
Autismo e psicologia do desenvolvimento humano
Ao lado das perspectivas masculinas na psicanálise e no racionalismo, a psicologia do desenvolvimento é mais um elemento na produção de uma teleologia normativa do crescimento em etapas que culminará em um adulto humano pretensamente universal. A psicóloga feminista britânica Erica Burman (2017) afirma que dois dos principais legados deixados pelo século XIX para a psicologia do desenvolvimento de 1970 — que foi criada na esteira das teorias cognitivistas — são uma prioridade dada à biologia e uma divisão entre “social” e “não social”. Tanto o organismo biológico quanto o sistema social são tidos como termos previamente dados e separados um do outro. O desenvolvimento da criança é pensado como uma repetição da evolução da espécie, sendo privilegiada a chegada à mente de um adulto acabado, enfatizando, mais do que o processo, um produto final específico. O psiquiatra martinicano Frantz Fanon (2020) já alertava que a pretensão à universalidade de pressupostos civilizatórios ocidentais não leva em conta as diferentes condições de vida, implicando em uma racialização dos povos colonizados que os descreveu como “primitivos” e “débeis mentais”. Essa foi também uma das críticas de Benjamin (1987) a uma teoria psicanalítica do homem social que focaliza um resultado prescrito, a racionalidade masculina, e leva à patologização e à desumanização dos percursos que se desviam do único caminho traçado como bem-sucedido. Burman (2017, pp. 54-55) acrescenta:
Uma explicação completamente normativa do desenvolvimento é desse modo produzida. Por fim, o objetivo parece ser demarcar os humanos em relação a outros tipos de animais e confirmar a especialidade do “homem”, que é vista como residindo na adaptabilidade “dele”, particularmente em relação a capacidades comunicativas e simbólicas.
Podemos ouvir nas palavras de Burman o eco da voz cibernética de Mel Baggs se encontrando com o eco da voz não menos sintética de Paul B. Preciado. Para a psicologia do desenvolvimento dos anos 70, que continua sendo amplamente lida e citada, “o humano”, no masculino, é demarcado pela sua adaptabilidade às capacidades comunicativas e simbólicas, tão valiosas para o capitalismo pós-fordista e pelas quais o autismo foi medicamente fabricado como um filme em negativo. Já vemos de onde bebe a bioética de Peter Singer.
Na mesma direção, alguns anos depois, surge uma teoria que rapidamente consolida sua popularidade e passa a ser usada sem avaliação crítica, principalmente em trabalhos sobre o desenvolvimento infantil: a teoria da mente. É uma abordagem que combina a psicologia do desenvolvimento com a psicopatologia, recorrendo à neurociência, e repercute incisivamente nas concepções do autismo. Nela, o social é reduzido ao cognitivo, intensificando o processo iniciado pelas teorias da década de 70: sua questão é como as crianças podem inferir o estado mental de outras pessoas, apreender eventos mentais escondidos e teorizar sobre eles. O problema que se apresenta para as crianças seria assim o mesmo problema cognitivo já posto para o pesquisador (que está tentando teorizar sobre a mentalização das crianças), criando uma circularidade metodológica. Apesar da pretensão de neutralidade, aqui a racionalidade masculina retorna com toda força a partir da premissa dos dualismos cartesianos entre mente e corpo, sujeito e objeto: há uma mente incorporal, individual, separada, que olha para fora tentando representar fielmente a realidade externa (nesse caso, outra mente individual). Assim é entendida a autonomia cognitiva como condição da sociabilidade. Nessa perspectiva, pessoas autistas poderiam ser definidas, pela falta de uma teoria da mente, como deficientes cognitivas e impossibilitadas para o contato social (Burman, 2017).
Algumas propostas têm questionado metodologias incorporais como a da teoria da mente, que miram estados internos sem interrogar a pesquisa como sendo ela mesma um evento social e ignoram as implicações da própria metodologia nos resultados obtidos. As pesquisas críticas citadas por Burman (2017) privilegiam, ao contrário, métodos participativos e corporificados, fazendo com que outros resultados sejam fabricados. Em uma dessas investigações, as habilidades relacionais de jovens autistas são avaliadas pela oferta de entrevistas baseadas em atividades para expressarem suas visões de si. As atividades consistiam em disponibilizar um ponto de referência compartilhado e não pressupunham a necessidade de um contato visual, incitando explicações que possibilitam que seja documentado um “forte senso de identidade, com toda a linguagem autoreferencial que supostamente falta às pessoas com autismo. (…) Contrário ao modelo da teoria da mente, as crianças nas entrevistas orientadas por atividades também mostraram a habilidade de tomar uma perspectiva” (Burman, 2017, p. 59).
Fica evidente a diferença entre as duas abordagens metodológicas citadas por Burman (2017). Esquematicamente, de um lado, há a perspectiva desenvolvimentista da socialização, que estabelece um ponto de chegada ideal e trata o biológico e o social como dados pré-existentes, cuja verdade apenas uma pesquisa científica neutra descobriria. Mais uma vez, é também a partir desse modelo que o autismo pode ser visto como um déficit, ao pressupor uma divisão categórica e inerente aos corpos entre a capacidade e a incapacidade de alcançar as habilidades sociais. Do outro lado, há uma perspectiva que enxerga a própria pesquisa como produtora daquilo que pretende representar, em que a individualidade não é algo que “está lá”, como uma mente que mira o mundo, mas um terminal, algo como um continuum, que pode emergir se oferecidas as circunstâncias apropriadas. Nesse sentido, o déficit se situa mais no processo de pesquisa do que em jovens autistas em si — uma abordagem muito mais próxima de como Baggs (2010) pensa a deficiência e de como o gênero vem sendo tratado aqui: como uma produção relacional.
Há então, nas teorias normativas do desenvolvimento, uma ideia fixa de habilidade cognitiva que Baggs (2006a) acha um pouco estranha, mas isso não quer dizer que tente ignorar a diferença e queira reivindicar que pensa da mesma forma que todo mundo. A questão é que, enquanto Burman (2017) ressalta que pessoas autistas podem apresentar a habilidade que supostamente lhes falta de tomar uma perspectiva, de produzir uma linguagem autorreferenciada e uma identidade quando é ofertado um modo de pesquisa orientado por atividades e são utilizados outros caminhos, a crítica de Mel vai um pouco além. Baggs (2006a, 07:35-07:46) afirma, colocando uma nova questão: “só porque eu chego ao mesmo tipo de palavras que as outras pessoas usam não significa que eu estou usando o mesmo caminho para chegar lá, nem absolutamente que eu consigo sempre chegar lá”. Além de questionar os caminhos que privilegiamos para que uma perspectiva seja ou não forjada, ao dizer que nem sempre alcança as palavras e que passa grandes porções da sua vida em outro lugar, Baggs nos faz perguntar sobre a própria centralidade que damos à subjetividade — quando entendida unicamente a partir da capacidade da fala ordenada e comunicativa de sentido — como pressuposto e ponto de chegada das nossas concepções neurotípicas de humanidade.
Linguagem e sujeito autista
Essa é também uma questão que captura Jeannette Pols (2015), antropóloga holandesa, quando realiza uma pesquisa em instituições psiquiátricas. Por muito tempo, ela diz, pacientes não eram vistos como sujeitos que sabem, mas como objetos que são sabidos pela medicina. Tomou então grande importância em certo momento que a perspectiva dos pacientes fosse ouvida, que pudessem ser produtores de um saber sobre eles mesmos. Como apontado acima por Fonseca (2014), a fabricação do indivíduo moderno envolve tecnologias confessionais de subjetivação que produzem um sujeito falante diante de um especialista apto para ouvi-lo e interpretá-lo. Os efeitos da construção de uma perspectiva se tornaram um dos pontos centrais para a produção de subjetividade nessa perspectiva. Em suas entrevistas interessadas em ouvir os pacientes psiquiátricos, entretanto, essa obrigatoriedade se torna para Pols (2015, p. 206) um problema:
Ter uma perspectiva significa formular uma visão individual, opinião ou narrativa sobre o mundo que representa suas experiências. Consequentemente, se você não pode falar ou preencher questionários, você não pode produzir uma perspectiva. (...) Pacientes silenciosos não podem ser representados como sujeitos em pesquisas. Nesse sentido, a perspectiva do paciente é um conceito normalizador. Estudar perspectivas presume que é normal ser capaz de falar e refletir sobre uma situação específica e formular opiniões sobre ela.
Pols (2015) encontra então uma conclusão sutilmente diferente daquela dos estudos analisados por Burman (2017) a respeito do capacitismo5 em pesquisa. Ora, o “sujeito autista” é uma produção, como toda subjetividade é resultado das tecnologias que a produzem. Mas as entrevistas orientadas por atividades ainda pressupõem a perspectiva como uma prerrogativa (sua pergunta parece ser como tornar possível produzir um “sujeito autista”) quando afirmam que autistas, se oferecidas as condições, podem emitir uma narrativa autorreferenciada tanto quanto outras pessoas. Pols (2015) toma outro caminho, experimentando abandonar as entrevistas como uma aposta metodológica para a sua pesquisa. A autora percebe que a própria situação da entrevista se torna um evento desagradável para aqueles pacientes, que muitas vezes se mostram assustados, e principalmente inadequado para pacientes que não falam em situação alguma, mesmo fora das entrevistas. Em vez de ajustá-las para que enfim pacientes silenciosos pudessem falar diante dela e nos seus termos, o que Pols (2015) faz é recolocar suas perguntas a partir desse encontro, removendo o lugar logocêntrico atribuído à fala e lançando-se num mundo de outras questões que não dizem respeito à objetivação, mas tampouco dizem respeito à obrigatoriedade de uma subjetivação de modalidade autonarrativa. Com todo o caminho que percorremos até aqui, isso nos leva diretamente de volta a Mel Baggs.
O autismo é definido pela ausência das coisas mais caras ao modo contemporâneo de produção capitalista: “A ausência da fala. A ausência da linguagem. A ausência do pensamento. A ausência do movimento. A ausência da compreensão. A ausência do sentimento. A ausência da percepção” (Baggs, 2010, párrafo 4). Chama a atenção de Baggs como até mesmo algumas pessoas autistas chegam a usar essas palavras para descrever a si mesmas, quando focar na ausência é apenas a forma mais fácil de descrever a presença de algo que é muito mais importante do que o que está ausente. Há muitas palavras para dizer do que está ausente, mas poucas para descrever como tantas pessoas autistas se relacionam com o mundo.
Isso é o que Gustavo Henrique Rückert (2021), brasileiro, pesquisador e poeta autista, chama, também partindo do trabalho de Mel Baggs, de uma “taxonomia da ausência”, caracterizada por ele como um vasto repertório de vazios e faltas que reduz nossa experiência com o mundo.6 Amparada em crenças metafísicas ocidentais, essa taxonomia da ausência prioriza a fala articulada enquanto expressão prioritária da racionalidade — como veremos também, mais adiante, na companhia de Anne Carson (2020) — na medida em que “atribuir a um outro a ausência do logos é construir para si a sua presença metafísica” (Rückert, 2021, p. 15), o que tanto confere a autoridade do modelo biomédico quanto explica como a própria concepção de uma linguagem autista pode vir a ser tão perturbadora. Seguindo e complexificando a pista de Baggs (2010), Rückert (2021) questiona o modo como uma grande variedade de obras autobiográficas escritas por pessoas autistas têm se utilizado da taxonomia da ausência para construir uma narrativa de superação — muitas vezes com subtextos capacitistas — que pouco ameaça a estabilidade da metafísica ocidental que dá base ao indivíduo moderno. É por isso, argumenta o autor, que são essas as publicações que ganham espaço no mercado editorial, enquanto é nas publicações marginais, produzidas por editoras menores ou manualmente ou mesmo difundidas pelas redes sociais, que ele encontra uma potência provocativa que pode estremecer as prerrogativas da taxonomia da ausência. É justamente por essa via que Baggs (2010) realiza uma inversão extremamente contundente: aponta para a ausência de um vocabulário e, de modo mais radical, para a precariedade da própria cultura.
Um fundo preto com o título em branco In my language (Na minha linguagem) aparece na tela. Na primeira cena, Baggs (2007) está diante da janela, de costas para a câmera, balançando seu corpo. Movimenta os dois braços incessantemente ao redor do corpo, fazendo movimentos circulares com as mãos. Uma voz entoa ao fundo algo parecido com uma dissonante música cantada. Nas próximas cenas, vemos as mãos de Mel em contato com diferentes objetos, raspando, balançando, jogando, apertando, trepidando, arranhando, circulando, produzindo sons repetitivos que se fundem à voz musical. Essas mãos abrem um livro e Mel o acaricia com o rosto enquanto balança. Novamente perante a janela, suas mãos se movimentam. Lá fora há uma árvore e o céu está limpo.
Corta para o fundo preto. Aparece outro escrito em branco: “A Translation” (Uma tradução). A partir do terceiro minuto do vídeo, postado por Baggs em seu canal no YouTube, a voz ao fundo não é mais a voz cantada, mas a voz metálica e legendada sintetizada pela digitação. A voz começa a explicar que as primeiras cenas que assistimos foram feitas na sua linguagem. Quando diz linguagem, entretanto, não se refere a mensagens simbólicas, à produção de palavras e símbolos visuais feitos para a interpretação da mente humana. Em vez disso, sua linguagem é sobre estar em uma conversa constante com todos os aspectos do que circunda, reagindo a eles fisicamente enquanto eles reagem também:
Ironicamente, o modo como eu me movo quando respondo a tudo ao meu redor é descrito como “estar em um mundo só meu”, enquanto se eu interajo com um conjunto de respostas muito mais limitado e só reajo a uma parte do meu entorno muito mais limitada, as pessoas afirmam que eu estou “me abrindo para a verdadeira interação com o mundo”. Elas julgam minha existência, consciência e pessoalidade baseadas na pequena e limitada parte do mundo à qual pareço estar reagindo. (...) É um jeito de pensar por si só. Entretanto, o pensamento de pessoas como eu só é levado a sério se aprendemos sua linguagem. É só quando eu digito alguma coisa na sua linguagem que vocês se referem a mim como tendo comunicação. (Baggs, 2007, 04:05-05:13)
Mel cheira as coisas. Ouve, sente, degusta e olha as coisas. Mas isso não é suficiente se não o faz para as coisas certas, como olhar para os livros, e deixa de fazê-lo para as coisas erradas, do contrário duvidam que seja um ser pensante, adulto, humano. Baggs acha interessante como a falha por parte das pessoas autistas em aprender nossa linguagem é vista como um déficit, mas a falha em aprendermos sua linguagem é vista como tão natural que as pessoas autistas são descritas como misteriosas, em vez de qualquer um admitir que somos nós que estamos confusos com a sua presença, e não as pessoas autistas que são inerentemente confusas. Como diz, esse vídeo, postado por Baggs (2007) em seu canal no YouTube, não foi feito para que possamos ter um vislumbre do funcionamento bizarro da mente autista. O vídeo foi feito como uma afirmação da existência e do valor de muitos tipos diferentes de pensamento — já que o modo de pensar em nosso mundo determina o estatuto de humanidade e o grau de permissividade que damos à violência e à morte.
O mesmo ocorre em relação ao gênero, como aponta a filósofa estadunidense Judith Butler (2019, p. 25), que discute como a atribuição binária de gênero contribui para a delimitação daquilo que se qualifica como ‘ser humano’. Vemos isso de forma mais clara nos exemplos desses seres abjetos que não parecem estar apropriadamente generificados; a própria humanidade deles é “questionada”. Mel Baggs, como uma pessoa autista de gênero não-binário, uma pessoa retardada lida como um homem de seios ou uma mulher de barba, se encontra no perigoso cruzamento dessas duas abjeções, nessa dupla condição de não-pessoa. Preciado (2013, 1:27:50-1:28:40) aponta então que o que vai propor Mel Baggs
é um aparato de verificação que possa ter em conta sua forma de percepção e decodificação do mundo, que a reconheça como verdadeira e como sã. Portanto, o que está pedindo é algo em princípio tremendamente forte (...), inclusive frente às demandas tradicionais que viemos fazendo desde os movimentos feministas, transexuais e transgênero, e desde meu ponto de vista ao que mais se parece é aos movimentos intersexuais e transexuais contemporâneos, que vão dizer: “Bom, eu tenho uma percepção do corpo sexual vivo que não é exatamente a mesma, não coincide com a normalizada — isso não quer dizer que não seja sã”.
Baggs realiza uma tradução na língua nacional para dizer do que essa mesma língua fez e faz com as pessoas autistas. Para dizer de como elas têm que rechaçar suas próprias linguagens, sua própria relação com o mundo, para converterem-se em seres humanos pensantes. Digita na linguagem hegemônica não para nos apresentar uma ascensão ou uma conquista, tentando mostrar que pode ser igual a todo mundo, mas como o modo de levarmos a sério o que tem a dizer. Se a racionalidade masculina, branca e heterossexual preconiza que o corpo que é posto fora da humanidade é um corpo matável, é nas fronteiras dessa linguagem excludente que Mel a questiona para desmantelá-la, para colocar em xeque o próprio pressuposto neurotípico de que a humanidade começa e termina numa relação estanque entre sujeito e objeto, homem e mulher.
Interdependência e neurodiversidade
No neurocentrismo contemporâneo (que tem embasado cada vez mais os manuais diagnósticos e as teorias do desenvolvimento), pessoas autistas são consideradas neuroatípicas. Seu cérebro não funcionaria da mesma maneira que o das pessoas neurotípicas. “Neurotipicalidade” é uma formulação que parte das pessoas autistas para nomear a norma que as nomeia e as rebaixa. Para a maioria de nós, a neurotipicalidade está naturalizada e passa despercebida, enquanto para pessoas autistas a maneira como ela organiza nossas experiências costuma frequentemente aparecer em primeiro plano. A artista e filósofa canadense Erin Manning (2016), ao pesquisar documentários e textos produzidos com e por pessoas autistas, dá uma descrição da neurotipicalidade como a crença na independência do pensamento e do ser atribuível acima de tudo aos humanos, partindo de uma superioridade neurológica. A autossuficiência é o objetivo e o corpo capaz é tomado como pressuposto e ponto de chegada ideal para a existência, um corpo regido por escolhas e uma noção consolidada de onde ele termina e o mundo começa. O corpo neurotípico é um envelope de pele. A categorização da experiência, sua separação em sujeitos e objetos, é parte necessária do crescimento. É a partir dessa noção de independência que a liberdade é definida. É uma política que enquadra nossas ideias de quais vidas valem a pena serem vividas, profundamente ancorada, como podemos ver, nas concepções de indivíduo e conhecimento da racionalidade masculina de que vínhamos falando até aqui. A racionalidade instrumental vem sendo traduzida pela neurociência com cada vez mais intensidade nas últimas décadas. A neurotipicalidade é um enquadramento masculino da experiência.
Para muitas pessoas autistas, torna-se crucial a invenção de técnicas que facilitam a navegação em uma existência orientada pela neurotipicalidade masculina, entre as quais destacamos as técnicas da escrita — Mel Baggs, que não sai de sua casa e não pode falar, trabalha politicamente “em conexão crítica com a máquina semiotécnica” (Preciado, 2013, 1:26:17-1:26:20) através da digitação. A respeito da escrita, Manning (2016) discorre sobre a comunicação facilitada para mostrar como a neurotipicalidade está baseada no indivíduo como origem do pensamento. A comunicação facilitada é um sistema de suporte organizado em torno da escrita e utilizado por muitas pessoas autistas que não se comunicam com a “própria” voz. Geralmente, ela começa com a ajuda de um contato próximo, como o toque da mão de um facilitador, e o ideal estabelecido pela normatividade neurotípica é que a digitação se desenvolva para que o suporte da mão facilitadora não seja mais necessário. O vínculo com o facilitador precisa ser rompido para a aquisição de uma linguagem independente e verdadeira, assim como, para certa psicanálise, o vínculo com a mãe, com o feminino e com a natureza precisa ser rompido para alcançar o estatuto de um indivíduo livre e sociável (Benjamin, 1987).
Há uma grande polêmica em torno da comunicação facilitada que sugere que o que essa relação realiza não é uma comunicação autêntica. Os críticos a esse modo de escrita, principalmente neurocientistas, argumentam que os facilitadores estão fazendo todo o trabalho pelos autistas: “Para serem considerados propriamente inteligentes, autistas precisam assim se submeter a infinitos testes que controlam a expressão individual: eles precisam mostrar que suas palavras são realmente suas” (Manning, 2016, p. 137). Com efeito, como diz Preciado (2013), quando Mel Baggs põe em circulação o vídeo In my language, hoje bastante conhecido no movimento da neurodiversidade, gera uma enorme turbulência no âmbito das indústrias da incapacidade nos Estados Unidos. Ainda que Baggs estivesse digitando sem a presença de um facilitador humano, um conjunto de médicos vem contestar a autenticidade do vídeo, afirmando que Baggs não pode ter feito o que fez, que alguém estaria manipulando as pessoas autistas, que nunca uma pessoa autista poderia dizer o que diz.
O argumento de Manning (2016), entretanto, baseado na escritora autista estadunidense Lucy Blackman, é de que a comunicação facilitada, à revelia dos pressupostos médicos, ativa uma co-composição que se encontra nas passagens, nos interstícios, como uma escrita híbrida entre o facilitador e a pessoa autista, entre a linguagem neurotípica e a linguagem autista. Aliás, quando perguntada sobre a importância da independência para a comunicação, o que Blackman afirma é que não existe comunicação sem facilitação — ou seja, toda comunicação, até mesmo a neurotípica, é interdependente e relacional. Dependemos de conexões para nos comunicarmos. A escrita nunca se dá sem mediação.
A escritora de origem coreana Mia Mingus (2017), uma pessoa queer com deficiência física, se refere à independência como um mito que gira em torno da ideia, pautada pelo individualismo capitalista, de que deveríamos ser capazes de fazer tudo por conta própria. A independência é um mito porque, por mais que se tente negar, não conseguiríamos viver sós: nós dependemos uns dos outros para ter acesso a alimentos, roupas, transporte, água potável, um ar respirável — uma conversa. O alto valor que conferimos à independência é um dos pilares da cultura capacitista em que vivemos. Como proposto por Mingus (2017), o caminho em direção à interdependência, ao contrário, move-se para a construção de relacionamentos em que o que todos têm a oferecer é valorizado. Os vínculos, rechaçados pela teleologia da racionalidade masculina como atributo feminino, são o que toma a frente nos estudos críticos da deficiência, abrindo uma porosidade à dança da percepção autista entre as palavras que, por sua vez, “pode criar modos de falar e ouvir que podem enfraquecer a neurotipicalidade como o paradigma dominante da existência humana” (Manning, 2016, p. 160). Afinal, como afirma a escritora canadense Anne Carson (2020, p. 125, grifos da autora), no texto “O gênero do som”,
a definição de natureza humana preferida da cultura patriarcal está baseada na articulação do som. Como diz Aristóteles, qualquer animal pode produzir barulhos para registrar prazer ou dor. Mas a diferença entre homem e fera, entre civilização e barbárie, é o uso do discurso racionalmente articulado: o logos. A partir de tal preceito, seguem-se regras severas para aquilo que constitui o logos humano.
O vínculo facilitador também coloca em xeque a definição neurotípica do corpo como um envelope de pele que demarca um espaço natural e individual. Pelo vínculo, como campo de multiplicidade aberto a estranhamentos e transformações, o corpo é uma criação indócil que resiste aos procedimentos de produção da norma. Através da facilitação, o corpo se faz também como potência no desvio dos próprios princípios modernos da separabilidade, da determinabilidade e da sequencialidade (Silva, 2019). A facilitação rearticula as tecnologias de produção dos corpos normais e anormais, humanos e não-humanos — como a escrita, mas também as próteses utilizadas por pessoas trans e deficientes — e, ao mesmo tempo, levanta-se contra esse mesmo regime de segregação (Preciado, 2011). A escrita deixa de querer partir de uma mente individual incorporal, desfaz-se do sujeito como origem do pensamento, assumindo-se como um processo de construção coletiva e encarnada, um processo de criação conectiva entre a mão (ou pata) facilitadora, a mão digitadora e a máquina vocalizadora — composição que a feminista estadunidense Donna Haraway (2009) talvez não hesitasse em chamar de ciborgue. No caso de Baggs, sua gata, Fey, é sua facilitadora mais confiável e melhor treinada: “Diferente de quando eu uso facilitadores humanos, ninguém nunca diz que Fey é a verdadeira autora do meu trabalho” (Baggs, 2006b, p. 7). Além do dispositivo da comunicação escrita, o corpo vivo de Mel Baggs é composto com bengalas, cadeiras de rodas, um tubo de alimentação, talas, serviços de moradia assistida, oxigênio suplementar e outras conexões interespécies.
A concepção neurotípica do corpo carrega ainda outras consequências, relativas agora ao movimento. O estigma relacionado aos movimentos imprevisíveis do corpo autista é pautado pela demarcação de uma função específica e estável para cada parte do corpo, que deve ser submetido ao autocontrole. Essa mesma demarcação é acionada violentamente em direção às deficiências e às dissidências sexuais e de gênero. Em relação à história da linguagem corporal, por exemplo, Carson (2020) mostra como as manifestações somáticas das mulheres, que fugiam ao ideal masculino do autocontrole, foram patologizadas como histeria e precisaram passar, a partir também da psicanálise, por uma articulação falada como parte de seu tratamento. Além das histéricas e das pessoas autistas, também as pessoas surdas se viram excluídas dessa concepção neurotípica, masculina e capacitista de humanidade baseada na fala:
Quando a esposa de Alexander Graham Bell, que tinha ficado surda na infância e sabia fazer leitura labial, mas não falava muito bem, pediu que o marido lhe ensinasse a língua dos sinais, Alexander respondeu: “O uso da língua de sinais é pernicioso. Pois a única maneira de dominar por completo uma língua é usá-la para comunicar o pensamento sem ter de traduzi-la para nenhuma outra língua”. A esposa de Alexander Graham Bell — com quem ele se casou pouco depois de patentear o telefone — nunca aprendeu a língua de sinais. E nenhuma outra.
Afinal, o que existe de tão pernicioso na língua de sinais? Para um marido como Alexander Graham Bell, assim como para certa ordem social patriarcal como a da Grécia Antiga, há algo de incômodo ou anormal no gesto de usar sinais (...) sem passar pelo ponto de controle do logos. Em outras palavras, o sentido, dessa maneira, não fica sujeito ao mecanismo de separação que os gregos chamavam de sophrosyne ou autocontrole (Carson, 2020, pp. 125-126, grifos da autora).
Nesse mesmo sentido, em uma conversa caminhando pela rua, Judith Butler elabora com a escritora deficiente estadunidense Sunaura Taylor sobre como os corpos que não agem de acordo com uma determinada função de suas partes - ou seja, que agem em desacordo com o que supomos ser o uso correto do corpo — são desumanizados (Butler & Taylor, 2016). Baggs aponta que é preciso olhar para os livros e interagir de determinada forma: não se deve acariciá-lo com o rosto repetidamente. Se alguém pega um copo de café no balcão com a boca, por exemplo, por ter uma mobilidade reduzida dos braços, isso se torna um problema, como afirma Taylor a partir da própria experiência. Butler conta a história de um estudante que foi assassinado pelos seus colegas a caminho da escola simplesmente porque movimentava “demais” o quadril ao caminhar, movimento inaceitável para um “corpo masculino”. São essas funções pré-estabelecidas que as pessoas autistas, com deficiência e sexo-gênero dissidentes subvertem, mas não sem pagarem um preço, tantas vezes, demasiado alto. Movimentar-se carrega implicações políticas.
Por isso é importante que a invenção de técnicas que facilitam a navegação em uma existência orientada pela neurotipicalidade masculina — como a comunicação facilitada — não queira dizer que outros aspectos da experiência autista não possam ser afirmados. Em contraponto à neurotipicalidade, a neurodiversidade é um movimento e uma plataforma de transformação política que desafia a ideia de que o mundo é dado e altera profundamente a maneira como definimos e afirmamos a vida, convocando que honremos complexas formas de interdependência e criemos novos modos de vinculação e relação (Manning, 2016). Na percepção autista, mais do que um lugar delimitado, o corpo é um campo de sensações:
A percepção autista (...) não é a descrição de um grupo de autistas. É (...) uma tendência na percepção, compartilhada por todos, que privilegia a complexidade da experiência sobre as categorias. (...) A entrada dos autistas no ambiente começa não com a percepção de objetos (cadeiras, mesas) ou de sujeitos (pessoas), mas com uma afiação em direção à forma [edging into form] (...). Enquanto, como para os neurotípicos, o ambiente toma forma no fim das contas, há um intervalo de tempo importante entre a percepção direta da ecologia emergente e a tomada-de-forma propriamente dita dos objetos e sujeitos nesse meio (Manning, 2016, p. 112).
Esse intervalo de tempo atua como um lapso na passagem entre as sensações e a percepção — daí a importância política atribuída por Baggs (2006a) à lentidão e ao retardo. De acordo com essa abordagem da neurodiversidade, podemos ver como esse movimento político, que não é homogêneo, não necessariamente implica em uma redução do autismo a uma explicação causal neurológica, apesar de lançar mão do prefixo “neuro”. Longe de ter sua origem localizada apenas no cérebro, a percepção autista é aqui concebida como um modo ecológico de relação em que o corpo está em processo coletivo de co-composição com o mundo — não é um dado natural nem individual. Do mesmo modo, a neurotipicalidade não é aqui um status biomédico, mas um regime político de organização da experiência.
Em um pequeno artigo intitulado Up in the clouds and down in the valley: my richness and yours (Baggs, 2010) (Acima nas nuvens e abaixo no vale: minha riqueza e a sua), Mel descreve, na língua nacional, sua experiência com a percepção autista — sem qualquer pretensão de tomá-la como universal, embora saiba ser compartilhada por outras pessoas com o diagnóstico de autismo, e também sem qualquer pretensão romantizá-la ou de criar novos estereótipos, como se a existência autista pudesse ser esgotada por essas palavras. Deve-se levar ainda em consideração que seu diagnóstico, hoje, é considerado parte do Transtorno do Espectro Autista, englobando uma multiplicidade de “sintomatologias”, na linguagem das concepções biomédicas — a descrição de Baggs, nas fichas de uma instituição onde esteve, é de “funcionalidade baixa” (Baggs, 2020, p. 83). Baggs diz que suas primeiras memórias são de sensações de todos os tipos, cores, sons, texturas complexas e envolventes. Não duvida que a dificuldade das pessoas neurotípicas entenderem essas sensações seja um dos motivos para que vejam sua percepção como um buraco vazio, em vez de tão rica quanto a sua. A familiaridade com algumas sensações vai aos poucos criando padrões que constituem sua percepção:
Quando eu digo padrões, entretanto, a maioria das pessoas pensa que eu quero dizer categorias. Eu não quero dizer categorias em nenhum sentido usual. Eu quero dizer coisas se encaixando de certas maneiras, fora de mim. Eu quero dizer perceber conexões sem encaixar à força uma configuração de pensamentos em cima delas. É por isso que eu fui capaz de desvendar quais palavras vão com quais respostas muito antes de poder desvendar o significado das palavras (...). Mas eu tenho um mapa extenso e complexo de todos os tipos de padrões muito maiores e as situações com que eles vão. Grande parte desse mapa foi desenvolvido antes do entendimento de uma palavra sequer em inglês e, embora meu entendimento das palavras fosse muito atrasado, meus mapas de padrões de palavras continuam a florescer. (Baggs, 2010, párrafo 12)
A linguagem neurotípica masculina é baseada em categorias, na separação do mundo entre sujeitos e objetos e na compreensão do sentido das palavras. Baggs, entretanto, entende melhor as palavras através do tom. A música das palavras captura sua atenção mais do que o significado, e com ela Mel vai compondo mais padrões: “Eu considero esses padrões e conexões mais minha linguagem do que as palavras que aparecem na tela quando eu deixo meus dedos usarem o teclado” (Baggs, 2010, párrafo 17). Como afirma Rückert (2021), em diálogo com o trabalho do pesquisador e poeta estadunidense Ralph Savarese, há na formação de padrões, de vínculos com e entre as coisas, uma poética sensorial pouco apreendida pelo universo neurotípico, como nos sons e nos gestos apresentados na primeira parte do vídeo In my language (Baggs, 2007). Enquanto a neurotipicalidade enfatiza os aspectos semânticos de uma palavra, a percepção autista cria uma afinidade com a sua musicalidade através da repetição, da circularidade e da ênfase na tonalidade, o que para o autor faz com que a poesia,7 como corporalização da linguagem, possa ser situada como uma espécie de exercício político de tradução, de interstício e de subversão, assim como viemos dizendo, com Blackman (Manning, 2016), a respeito da comunicação facilitada.
Além da formação de padrões sensoriais, Mel se comunica através da linguagem corporal e da organização do espaço, que são formas de comunicação que têm sua própria riqueza, e não meras substitutas, já que não comunicam exatamente as mesmas coisas que a linguagem usual. As maneiras de arranjar objetos e ações utilizadas por Mel Baggs e outras pessoas autistas, que dão pistas de para onde e como o interesse está dirigido, se aproximam da aposta metodológica de Pols (2015) quando abre mão da centralidade da perspectiva e da fala em sua pesquisa. A antropóloga diz que a metodologia pode interrogar-se a partir do encontro com pacientes silenciosos “se analisarmos apreciações como sendo performadas em vez de serem opiniões dadas ou narrativas contadas. Em suas ações, as pessoas ‘demonstram’ o que gostam ou desgostam” (Pols, 2015, p. 210, grifo da autora).
Para Mel Baggs (2010), a linguagem neurotípica se localiza nas nuvens, e é preciso fazer uma escalada exaustiva pela montanha quando tenta compreendê-la. O céu é um país estrangeiro, e não importa o quanto esteja consistente na linguagem do chão, a maior parte das pessoas mede seu valor pela sua habilidade de se arremessar às nuvens. Assim como a linguagem, o pensamento simbólico e abstrato se localiza também no céu, no topo da montanha, enquanto abaixo, no vale onde habita, estão os padrões e as conexões. A maior parte das pessoas espera que o pensamento seja uma barulhenta fanfarra cognitiva em que possam se ver ou ouvir pensando, por isso nem mesmo consideram o modo neuroatípico de pensar como pensamento. Elas não esperam que o pensamento possa vir quietamente, através de relações, conexões e padrões entre as coisas, que é como surge o que mais importa para Mel: “Há todo tipo de árvores, muitas das quais não crescem na montanha. Eu chapinho nos riachos e o cheiro das rochas é vívido. Eu rolo no chão e o cheiro do solo é escuro e me satisfaz. Cada experiência é como um novo arco-íris para cada sentido” (Baggs, 2010, párrafo 24) — e é exatamente aí que está o problema quando as pessoas tentam definir o que é o humano. Embora o vale seja apenas definido como não-montanha e imaginado como um lugar seco e sem vida, o trabalho político de Mel Baggs (2010, párrafo 28) é sobre o que o vale é, e não sobre o que está faltando:
A riqueza que eu experiencio do mundo não é meramente uma versão mais limitada das experiências das outras pessoas. Minhas experiências têm sua própria riqueza que outras pessoas podem não ser capazes de ver, e são muito mais do que uma mera falta de movimento, pensamento convencional, fala, linguagem ou percepção. Mas a linguagem convencional só me permite esses termos, então eu fiz meu melhor para apontar o enorme e lindo mundo de experiências que se encontram entre essas palavras e além dos limites de uma linguagem nunca equipada para descrevê-las.
Considerações finais
Fazendo ressoar a tarefa proposta por Mel Baggs (2010) de escalar os penhascos da linguagem e gritar os vínculos entre algumas injustiças, abordamos como a racionalidade masculina começa a nascer das brasas da caça às bruxas e do empreendimento colonial. Indicamos como as tecnologias materiais e semióticas que começam a surgir em torno do século XIX são os grandes modos de produção em larga escala do indivíduo moderno privilegiado pela racionalidade masculina, criando também uma separação categórica entre os gêneros e as raças, os sujeitos e os objetos. Vimos como algumas pesquisas e teorias do desenvolvimento, da psiquiatria e da psicanálise, no século XX e até no começo do século XXI, constroem prescrições ainda baseadas nos pressupostos dessa racionalidade, procurando bases na neurociência, que situaram e situam a negritude, o feminino e o autismo em um ponto patológico, retardado e desumanizado. Passamos pela maneira como as pesquisas científicas e a mídia são acionadas para legitimar os manuais de diagnóstico dos transtornos mentais, que são hoje um produto das novas relações entre a indústria farmacêutica, a neurociência e os discursos psi.
Depois de encaminhar algumas problemáticas metodológicas a respeito da subjetivação via linguagem falada, buscamos elaborar as relações entre a racionalidade masculina, o capacitismo e a neurotipicalidade. O movimento da neurodiversidade surge, aí, junto aos estudos críticos da deficiência, como um potente aliado para os questionamentos que vêm sendo levantados por pessoas trans e movimentos insurgentes de gênero e sexualidade. Partindo de uma experiência excluída da concepção masculina e capacitista de humanidade e problematizando questões caras à psicologia, a política da neurodiversidade propõe a afirmação das vidas que não se organizam pelas separações entre sujeito e objeto, mente e corpo, corpo e mundo — filmando, escrevendo, vinculando, padrão por padrão, a ruína da normatividade neurotípica.