Introdução
Ao longo dos anos, tem sido debatida e reconhecida a importância da inclusão das mulheres nas carreiras de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (CTEM). Argumenta-se que a diversidade pode trazer aumento da inovação e da qualidade científica e que a redução da desigualdade de gênero impactaria positivamente o crescimento econômico dos países (EIGE, 2017; NSB & NSF, 2024). Apesar disso, as estatísticas seguem demonstrando que as mulheres estão sub-representadas na maioria das carreiras científicas, tanto na universidade, quanto no mercado de trabalho, no Brasil e no mundo (IBGE, 2023; Unesco, 2024; World Economic Forum, 2023).
Organismos internacionais e organizações sociais estão engajadas no planejamento e execução de ações para reduzir a desigualdade de gênero na Ciência (OECD, 2022). Mais recentemente, essas ações assumiram um enfoque interseccional, desenvolvendo medidas afirmativas para a participação de mulheres negras e LGBTQIAPN+ em seus programas. Afinal, se a diversidade de perspectivas traz benefícios para a produção científica, é preciso incluir mulheres com trajetórias, experiências e identidades distintas.
No entanto, há um grupo de mulheres que passa ao largo dessas iniciativas: mulheres com deficiência. Elas não aparecem sequer nas estatísticas nem costumam ser contempladas em políticas de fomento à igualdade de gênero. Este artigo tem o objetivo de trazer as mulheres com deficiência para o centro da discussão, divulgando e analisando indicadores inéditos sobre a sua presença nas carreiras CTEM. Trata-se de setor valorizado no mercado de trabalho e destacado por sua importância para a qualidade de vida, bem como para o crescimento econômico e a competitividade de um país no cenário global (OECD, 2022 ; NSB & NSF, 2024).
O artigo está estruturado em mais quatro seções além desta introdução. A segunda seção, apresenta os referenciais teóricos. Nela, inicialmente, contextualiza-se a discussão sobre desigualdade de gênero na Ciência, com ênfase na literatura que investiga os fatores para a sub-representação feminina. Na sequência, discutem-se as principais teorias que buscam explicar as desvantagens experimentadas pelas pessoas com deficiência no mercado de trabalho em geral, colocando-as em diálogo com o modelo social da deficiência. Ao final dessa segunda sessão, joga-se luz na importância de refletir sobre a situação específica das mulheres com deficiência, em uma perspectiva interseccional. Já na terceira seção, são apresentadas a base de dados utilizada para a construção de indicadores e as variáveis consideradas para a identificação das pessoas com deficiência, dos cursos de graduação e ocupações CTEM. Na quarta seção, são analisados os indicadores sobre a formação, ocupação e rendimentos das mulheres com deficiência, em comparação com os demais grupos populacionais, desagregados por sexo e deficiência1. Para tanto, utiliza-se metodologia de análise quantitativa descritiva. Na quinta e derradeira seção, são apontadas possibilidades para a continuação deste estudo e propostas para o desenvolvimento do tema.
Desigualdades de gênero e desvantagens vivenciadas pelas pessoas com deficiência no mercado de trabalho
Mulheres correspondem a mais da metade da população mundial, mas são minoria nas carreiras científicas, de acordo com as mais diversas formas de mensurar essa participação. Seja por matrículas na graduação e na pós-graduação em carreiras CTEM, na atuação como pesquisadoras, em autoria nas publicações internacionais ou nas ocupações no mercado de trabalho, elas estão sub-representadas (EIGE, 2017; OECD, 2022; Unesco, 2020, 2024; World Economic Forum, 2023). A academia busca compreender os motivos para essa situação de desvantagem em relação aos homens para fornecer diagnósticos que subsidiem políticas adequadas para a redução desse hiato.
Desconhecemos, porém, a existência de estudos com enfoque na participação de pessoas com deficiência nas carreiras CTEM. Assim, para dar subsídios à análise das desigualdades reveladas na sequência do artigo, são apresentadas também as principais teorias explicativas das desvantagens vivenciadas pelas pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Pessoas com deficiência têm menores chances de estar empregadas, estão sujeitas a segregação ocupacional e recebem menores salários nos mais diversos países.
Nesta revisão da literatura, demonstramos, ainda, impulsionados pelas críticas feministas ao modelo social e pelos Estudos da Deficiência que mobilizaram a interseccionalidade no Brasil, a importância de considerar o gênero articulado à deficiência para desvendar desigualdades no mercado de trabalho, em especial nas carreiras CTEM.
Determinantes da sub-representação das mulheres nas carreiras CTEM
A crença de que, por motivos biológicos, haveria diferenças cognitivas entre homens e mulheres que tornariam os primeiros naturalmente mais aptos e com maior afinidade com a Matemática e disciplinas afins é amplamente contestada por trabalhos empíricos sobre o tema (Ceci et al., 2009). O que explicaria, então, o melhor desempenho escolar em Matemática – medido internacionalmente pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (OECD, 2023) – e o maior interesse por carreiras científicas manifestado pelos homens (Hill et al., 2010)?
Uma linha de investigação aponta para fatores sociais e ambientais presentes desde a infância. Afinal, meninos e meninas são marcados por expectativas, normas e hierarquias de gênero, que restringem e estimulam comportamentos distintos, separando atividades entre as adequadas para eles e para elas (Risman, 2004; Kergoat, 2009). Os meninos tendem a ser, por exemplo, mais expostos à linguagem espacial pelos pais (Pruden & Levine, 2017). Na escola, professores subestimam as competências de suas alunas em Matemática (Robinson-Cimpian et al., 2014; Cimpian et al., 2016). Spencer et al. (1999) denominam “ameaça do estereótipo” o fenômeno que leva as meninas à autodepreciação de suas habilidades em Matemática e Ciências. A ameaça de estereótipo afeta concretamente o seu desempenho em tarefas que demandem esses conhecimentos desde cedo em sua trajetória escolar.
Como em um ciclo vicioso, a menor presença feminina em carreiras CTEM pode também contribuir para que as mulheres acreditem que têm menores chances de serem bem-sucedidas se optarem por essa área. Consequentemente, como as evidências indicam, deixam de expressar interesse e de perseguir uma profissão em Ciências (Eccles, 2006). Em outras palavras, o lema “representatividade importa” não constitui mero recurso discursivo, mas está amparado como norte para políticas que visem romper os estereótipos de gênero (Hill et al., 2010).
A menor participação das mulheres em carreiras CTEM também está associada a fatores posteriores à escolha da graduação. Em 14 de 19 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), é maior a proporção de mulheres que decidem trocar o curso CTEM por outra área. Tal cenário pode ser atribuído à sensação de isolamento e à ocorrência de microagressões em um ambiente majoritariamente masculino (OECD, 2022).
Concluída a formação acadêmica em CTEM, surgem as dificuldades para o exercício da profissão. A esse respeito, Ceci e Williams (2011) alertam para que não sejam tomados automaticamente como verdadeiros para as carreiras CTEM achados relativos à discriminação em outras áreas ou que foram relevantes no passado. Recorrendo a revisão de estudos empíricos e análise de dados que abrangem duas décadas, concluem que não há discriminação entre homens e mulheres na aceitação de artigos para periódicos, quando mantidas constantes variáveis como posição na carreira e filiação institucional. Do mesmo modo, asseveram que não há distinção por motivo de gênero na concessão de financiamentos para pesquisa nem em processos de recrutamento, desde que as demais variáveis estejam sob controle.
Isso não significa que neguem a influência das relações e hierarquias de gênero na sub-representação feminina nas profissões científicas. Ceci e Williams (2011) corroboram o argumento da ameaça de estereótipo e do condicionamento dos interesses nas primeiras etapas da vida e acrescentam outras dimensões da divisão sexual do trabalho. A divisão sexual do trabalho atribui prioritariamente aos homens as ocupações produtivas no mercado de trabalho e às mulheres as tarefas reprodutivas e não remuneradas no âmbito familiar (Kergoat, 2009). Portanto, mesmo quando ingressam no mercado de trabalho, são elas que dispendem a maior quantidade de horas semanais realizando afazeres domésticos e cuidando de familiares (Picanço et al., 2021). Tal sobrecarga logicamente impõe desafios à conciliação com a vida profissional, em especial em cargos com jornadas mais extensas e pouco flexíveis. Essa suposta conciliação, também designada conflito casa-trabalho (Picanço et al., 2021), pode ter consequências drásticas, levando mulheres inclusive a abandonarem carreiras CTEM (Hill et al., 2010).
Associado a essa divisão desigual das tarefas domésticas está o fenômeno da penalidade materna, que reduz os salários das mães, mesmo entre mulheres muito instruídas (England et al., 2016). Evidências apontam que as mães têm menores chances de serem promovidas e contratadas para posições efetivas/estáveis (tenured), influenciando tanto a sua decisão sobre ter filhos, quanto sobre concorrer a uma vaga com esse status (Ceci & Williams, 2011). Ou seja, ainda que as mulheres não sejam preteridas somente por serem mulheres na aceitação de artigos, na concessão de financiamentos e em processos seletivos, seu papel familiar pode afetar a produtividade, a posição na carreira e a filiação institucional. Tais fatores, por sua vez, são determinantes para aquelas três dimensões das carreiras científicas.
Além disso, mesmo que processos explícitos de discriminação possam estar em declínio, existem vieses implícitos que permeiam o ambiente trabalho, criando atmosferas hostis que impactam negativamente a trajetória profissional das mulheres (Hill et al., 2010). Quando bem-sucedidas em áreas consideradas como tipicamente masculinas, estão mais sujeitas a serem depreciadas pessoalmente, a deixarem de receber crédito por trabalhos realizados e a receberem piores avaliações e recomendações (Hill et al., 2010; Ross et al., 2022). Vale ressaltar que a literatura aponta que redes de contato têm um papel importante nas dinâmicas de alocação em postos de trabalho (Hirata, 2002).
Conclui-se, então, que as desigualdades entre homens e mulheres se constroem desde a infância, atravessam a trajetória escolar e acadêmica e se perpetuam no mercado de trabalho, com a interação de fatores presentes na esfera pública e familiar. O cenário é desfavorável, mas é preciso conhecê-lo para promover mudanças e, para que essas mudanças atinjam mulheres com perfis diversos, a produção de dados e análises também devem contemplar a diversidade. Por isso preocupa a escassez de informações sobre mulheres com deficiência, que, em alguma medida, este artigo se propõe a enfrentar.
Desafios para a inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho
Dentre as teorias econômicas e sociológicas que buscam explicar as desigualdades no mercado de trabalho, duas sobressaem pela recorrência com que são mobilizadas para avaliar a situação de menor empregabilidade, segregação ocupacional e as remunerações mais baixas oferecidas às pessoas com deficiência: a teoria do capital humano e as teorias de discriminação. Ainda que não esgotem as explicações possíveis para as desigualdades no mercado de trabalho, elas conjugam argumentos das perspectivas centradas tanto nas características dos empregados, quanto nos sentimentos e práticas dos empregadores.
A teoria do capital humano consolidou o conhecimento de que indivíduos com mais experiência e maiores investimentos em educação e treinamento tendem a ser mais bem remunerados (Schultz, 1961; Becker, 1962). Em sua formulação inicial, a teoria argumentava que tais investimentos elevavam a produtividade individual, podendo impulsionar o crescimento econômico, e que os mercados de trabalho competitivos remuneravam segundo essa produtividade.
A teoria do capital humano fez frente à ideia de que habilidades naturais explicavam a distribuição de rendimentos. O raciocínio era que se diversos atributos humanos, como o quociente de inteligência, são normalmente distribuídos na população, também o deveria ser a renda. A teoria do capital humano rompeu, então, com o determinismo incutido nessa relação, bem como com a literatura que passou a considerar como condicionante da renda o fator “sorte”. Porém, parte da premissa de que os indivíduos são agentes livres para racionalmente escolher investir mais ou menos tempo no capital humano (Mincer, 1958; Schultz, 1961).
Ora, as possibilidades de conquista desse capital não estão igualmente disponíveis para toda a população. Assim, ainda que parte das desvantagens que as pessoas com deficiência vivenciem no mercado de trabalho decorram das diferenças de capital humano, tais diferenças podem ser resultado de dificuldades que se impõem especificamente às pessoas com deficiência em um estágio anterior de sua trajetória (Johnson; Lambrinos, 1985; DeLeire, 2001). De fato, as pessoas com deficiência, por motivos diversos, têm menor acesso à educação, no Brasil e no mundo (Almeida, 2019; Albinowski et al., 2023). Portanto, chegam ao mercado de trabalho com menos capital humano do que seus pares sem deficiência.
Ou seja, mesmo desigualdades explicadas por variáveis de capital humano poderiam refletir discriminação e outras dificuldades infligidas às pessoas com deficiência, antes ou depois de seu ingresso no mercado de trabalho, já que a aquisição de capital humano é um processo social endógeno a esse mercado (Pettinichio & Maroto, 2017), Além disso, argumenta-se que a expectativa das pessoas com deficiência sobre o mercado de trabalho também pode influenciar suas decisões sobre o quanto e como investir em capital humano (Wilkins, 2004). Antecipar a possibilidade de discriminação poderia acarretar menor disposição de investir em sua formação ao longo da vida (Park, 2011).
Considera-se, por outro lado, que há efetiva discriminação quando pessoas com o mesmo capital humano – e outros atributos valorizados pelo mercado como sinais de produtividade – recebem salários ou oportunidades de emprego desiguais (Baldwin & Johnson, 1995). A discriminação pode ser fruto de preconceito ou, como a literatura denomina, de “preferências por discriminação”, que mobiliza aversão contra um grupo com determinadas características, um desejo de distanciamento físico e social (Becker, 1957; Baldwin & Johnson, 1994, 1995). Mais do que lógico afirmar que essa aversão possa ser direcionada a pessoas com deficiência no mercado de trabalho, há pesquisas que já investigaram explicitamente esse sentimento contra pessoas com deficiência (Tringo, 1970; Westbrook et al., 1993). Desse modo, empregadores com esse sentimento de aversão só contratariam pessoas com deficiência para trabalharem por salários menores do que pessoas contra as quais não nutrem desejo de distanciamento (Baldwin & Johnson, 2006).
A discriminação também pode assumir a forma de “discriminação estatística”, que resulta de informações imperfeitas que se tem sobre a produtividade de determinados grupos (Phelps, 1972; Aigner & Cain, 1977). A assimetria de informações em relação aos grupos majoritários pode decorrer de barreiras linguísticas ou culturais, da falta de experiência na contratação de empregados do grupo e outros motivos (Baldwin & Johnson, 2006). Em especial sobre as pessoas com deficiência, que seguem preteridas na produção de estatísticas, são menos contratadas e experimentam características mais heterogêneas, essas informações tendem a ser ainda mais falhas.
A discriminação contra um determinado grupo de trabalhadores pode sempre ser racionalizada atribuindo-se um custo a alguma característica do grupo que não está diretamente relacionada às suas habilidades laborais. (Aigner & Cain, 1977, p. 177, tradução da autora)
Assim, se os empregadores – mesmo não afetados pelo sentimento de aversão – supuserem que pessoas com deficiência são menos produtivas, menos qualificadas ou mais custosas por demandarem acessibilidade, eles tenderão a refutar a contratação de indivíduos desse grupo. Ou, ainda, oferecerão menores salários como uma espécie de penalidade pelo risco de contratá-los, independentemente das características concretas de cada um (Johnson & Lambrinos, 1985; Baldwin & Johnson, 1994, 1995, 2006; Russell, 2002). Daí a denominação “discriminação estatística”, uma vez que fruto de expectativas baseadas em uma média, mesmo que essa média não seja acurada, mas fundada em estereótipos.
Marotto e Pettinicchio (2014, p. 78, tradução da autora) reiteram que “menores níveis de capital humano, ao lado das percepções dos empregadores sobre deficiência, colocariam então as pessoas com deficiência no final da fila, limitando suas perspectivas de emprego e salário”. Essa seria uma expressão da chamada “teoria das filas”, que articula as dimensões do capital humano com a discriminação.
Outra linha de argumento, própria das teorias radicais da discriminação, aponta que as pessoas com deficiência são submetidas a exploração. Tendo em vista que elas têm maior dificuldade para conseguir trabalho e, consequentemente, maior dificuldade para trocar de posto uma vez empregadas, tornam-se trabalhadores com menor poder de barganha (Baldwin & Johnson, 2006). Nesse cenário, os empregadores tenderiam a explorá-los, retardando a concessão de reajustes salariais ou promoções, (Johnson & Lambrinos, 1985).
Estudos empíricos que testaram tais teorias, confirmam suas premissas. Assim, identificaram desigualdades nas probabilidades de emprego e salariais atribuíveis a diferenças no capital humano, mas também associadas à discriminação (Johnson & Lambrinos, 1985; Baldwin & Johnson, 1994, 1995; DeLeire, 2001; Park, 2011). Além disso, em experimentos conduzidos com envio/simulação de currículos de candidatos fictícios que se diferenciavam entre si pela deficiência, os principais resultados indicaram que os candidatos sem deficiência tinham o dobro de chances de recrutamento (Krogh & Berdgaard, 2022). No cenário brasileiro, a menor empregabilidade e a discriminação salarial das pessoas com deficiência também ficaram demonstradas mesmo quando controladas variáveis como escolaridade, renda e região (Garcia & Maia, 2014; Almeida, 2019; Becker, 2019; Silva, 2024).
Concepções arraigadas da deficiência contribuem para todos os tipos de discriminação, que, a partir deste momento, denominaremos capacitismo. O capacitismo designa a opressão específica às pessoas com deficiência, em paralelo com o machismo e o racismo, e focaliza a oposição entre corpos que são considerados capazes e os tidos como incapazes (Campbell, 2008; Guedes de Mello, 2014). A deficiência já esteve – e, em muitos contextos, segue estando – muito associada à ideia de tragédia individual, seja com enfoque místico, seja com o olhar biologizante. Foi apenas na década de 1970 que os precursores do modelo social da deficiência se organizaram politicamente em torno de um novo paradigma. Reivindicavam que a deficiência fosse concebida como a situação de opressão resultante de condições sociais que excluem as pessoas com impedimentos corporais da participação em sociedade (UPIAS, 1974; UPIAS & Disability Alliance, 1976). Com isso, a responsabilidade pela inclusão das pessoas com deficiência deixava de focalizar a correção do corpo e passava a mirar o ambiente e as atitudes. Em outras palavras, a responsabilidade deixava de ser individual e passava a ser coletiva.
O movimento de pensar o trabalho como um direito das pessoas com deficiência iniciou-se, é preciso reconhecer, antes da consolidação do modelo social. Costuma-se apontar que os pleitos dos egressos com lesões da II Guerra Mundial, organizados na Europa e nos Estados Unidos, foram fundamentais para a adoção de políticas de incentivo à contratação pelos empregadores (Barnes, 2003; Bonfim, 2010). No entanto, também se observa que, à medida que a memória da guerra enfraquecia, essas mesmas políticas perdiam a força.
O movimento se intensificou com a articulação das pessoas com deficiência em torno do modelo social, que tinha a inclusão no trabalho produtivo entre suas principais reivindicações. Contribuíram para a construção de um quase consenso em torno dessa estratégia a operacionalização do modelo social como um arranjo de direitos humanos, em especial na Convenção Internacional dos Direitos da Pessoas com Deficiência, e o processo de consolidação da União Europeia e uniformização de suas políticas, instituições e cidadania, ao que se somaram a globalização das organizações de pessoas com deficiência e a emergência de novos mecanismos globais de governança (Wegscheider & Guével, 2021).
Paralelamente, também foram divulgados estudos sobre a influência benéfica do emprego sobre o sentimento de pertencimento social, sobre a participação em outras dimensões da vida em sociedade, mormente eventos comunitários e culturais, sobre a autoestima, a autopercepção da saúde e a saúde mental de pessoas com deficiência (Schur, 2002; Wegscheider & Guével, 2021). Existem, ainda, estudos que correlacionam a situação de desvantagem no mercado de trabalho ao maior risco de as pessoas com deficiência vivenciarem a pobreza (Coleridge, 2005; Almeida, 2019). Em relação às mulheres com deficiência, acredita-se inclusive que a inserção laboral poderia reduzir a dependência afetiva e a vulnerabilidade à violência (Dias, 2020). Esse conjunto de achados e argumentos reforçaram o componente moral da estratégia do trabalho remunerado como pavimento para a inclusão social.
No capitalismo, porém, trabalhadores com deficiência são considerados mais fracos, lentos, improdutivos e os ambientes de trabalho muitas vezes são moldados de forma que inviabiliza a sua presença, mesmo no capitalismo pós-industrial (Erevelles, 2000; Russel, 2002). E não se trata apenas de inviabilizar fisicamente/sensorialmente a presença pela falta de adaptação e recursos de acessibilidade, mas pela própria organização social do trabalho – suas jornadas, flexibilização nas formas de contratar – o que pode tornar para as pessoas com deficiência mais difícil de conseguir e manter um emprego por mais tempo (Abberley, 1999). A comodificação do trabalho exige a comodificação do corpo, e o corpo com impedimentos é resistente a ela (Erevelles, 2000).
Não obstante, se a estratégia da inclusão social pelo trabalho está em voga, é preciso buscar formas de aprimorá-la, identificando fatores que favoreçam a inserção das mulheres com deficiência no mercado de trabalho em melhores condições. O diagnóstico fornecido neste estudo faz parte desse escopo. Essa preocupação não contradiz o reconhecimento de que sua inclusão plena não é possível sem transformações mais profundas. A reorganização do mundo do trabalho e a valorização de diversas formas de contribuição também precisam estar no horizonte.
A interação entre gênero e deficiência na reprodução de desigualdades
Para compreender como todos esses fatores operam em relação às mulheres com deficiência não basta somá-los. Reconhecer a deficiência como opressão, como proposto pelo modelo social, não esgota o entendimento dos seus efeitos sobre as mulheres, bem como a distinção dos papéis de gênero entre pessoas sem deficiência não pode ser automaticamente transposta para as pessoas com deficiência.
Um primeiro arco de crítica ao modelo social revelou dimensões até então não alcançadas por suas formulações, justamente a partir da importância de se considerar gênero no fenômeno da deficiência. Embora o modelo social tivesse sido bem-sucedido em revelar as barreiras existentes em termos de direitos civis e sociais, barreiras em esferas mais íntimas, como família, sexualidade, maternidade seguiam despercebidas (Thomas, 2004) e essas, por sua vez, também repercutem no mundo do trabalho. Mesmo em pleitos incluídos na pauta da UPIAS, o papel social das mulheres com deficiência não era considerado. Morris (1998), por exemplo, observou que as campanhas por transferência de renda sempre enfatizaram a importância de a pessoa com deficiência poder pagar pela assistência de que necessitasse para não depender a família para acessar o mercado de trabalho e outras dimensões da vida pública. Contudo, as mesmas campanhas pareciam ignorar que, para as mulheres com deficiência, também era uma preocupação que a assistência viabilizasse o papel de cuidadora a elas atribuído no âmbito de sua família.
Buscando “capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação” (Crenshaw, 2002, p. 7), a interseccionalidade havia emergido como ferramenta valiosa para as análises de desigualdades envolvendo, inicialmente, raça, gênero e classe, mas aberta a incorporar outros sistemas discriminatórios. Assim, nos Estudos da Deficiência no Brasil, a interseccionalidade despontou articulando deficiência com gênero, no trabalho de Guedes de Mello e Nuernberg (2012), e desde então têm sido mobilizada em reflexões sobre cuidados (Fietz & Guedes de Mello, 2018; Gesser et al., 2022), infância e adolescência (Moreira et al., 2022), educação (Eugênio & Silva, 2022), entre outras.
Um conjunto de evidências reforça a necessidade de se pensar também as relações de trabalho envolvendo pessoas com deficiência com enfoque interseccional, analisando-se as consequências da presença de certas características não como um somatório, mas em interação. Por exemplo, enquanto os homens com deficiência são aliviados da carga de afazeres domésticos em comparação aos seus pares do sexo masculino sem deficiência, as mulheres com deficiência realizam, em média, até mais horas de afazeres domésticos por semana que as sem deficiência (Botelho, 2022). Por outro lado, se para as mulheres sem deficiência, ter filhos parece afetar negativamente a probabilidade de ocupação no mercado de trabalho, esse efeito não costuma ser observado entre as mulheres com deficiência – o que, para Wilkins (2004), pode ser sinal de que as mulheres casadas experimentam impedimentos que são menos discriminados tanto na esfera íntima, quanto pública. Ou seja, a distribuição sexualmente desigual dos afazeres domésticos afeta ambos os grupos de mulheres, mas não parece produzir as mesmas marcas em suas trajetórias profissionais.
Em suma, é imprescindível para a compreensão de desigualdades no mercado de trabalho considerar as pessoas com deficiência como um grupo que, a despeito de uma identidade comum, é heterogêneo. Portanto, neste artigo, os indicadores estatísticos sobre a participação nas carreiras CTEM serão construídos para quatro grupos populacionais – mulheres com deficiência, mulheres sem deficiência, homens com deficiência, homens sem deficiência –, conforme as especificações descritas na próxima seção.
Variáveis e métodos para a utilização do Censo Demográfico de 2010
Este estudo recorre a técnicas de análise descritiva para retratar a presença das mulheres com deficiência nas carreiras CTEM no Brasil, empregando os microdados do Censo Demográfico de 2010, conduzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A utilização do Censo 2010 justifica-se porque os levantamentos mais recentes que identificaram a população com deficiência, sua escolaridade e presença no mercado de trabalho não dispõem de todas as informações necessárias para a análise específica das carreiras científicas2.
De todo modo, o artigo traz indicadores nunca explorados, o que por si representa uma contribuição relevante para os Estudos de Deficiência e para os Estudos de Gênero. Assim, pode orientar pesquisas futuras, em especial após a divulgação dos microdados sobre deficiência do Censo Demográfico de 2022. Com essa finalidade, estão descritas nesta seção algumas opções metodológicas para a construção dos indicadores analisados no artigo.
O Censo 2010 conduziu a investigação sobre pessoas com deficiência seguindo principalmente as diretrizes do Washington Group on Disability Statistics. O referido grupo foi criado na estrutura das Nações Unidas para incentivar e harmonizar a produção internacional de estatísticas oficiais sobre deficiência. Assim, o levantamento inquiriu, a respeito de todos os moradores3, sobre dificuldades que pudessem ter ao desempenhar funções corporais ou atividades, sem focalizar diagnósticos específicos, por meio das seguintes questões:
-
Tem dificuldade permanente de enxergar? (Se utiliza óculos ou lentes de contato, faça sua avaliação quando os estiver utilizando) – V06144
-
Tem dificuldade permanente de ouvir? (Se utiliza aparelho auditivo, faça sua avaliação quando o estiver utilizando) – V0615
-
Tem dificuldade permanente de caminhar ou subir degraus? (Se utiliza prótese, bengala ou aparelho auxiliar, faça sua avaliação quando o estiver utilizando) – V0616
-
Tem alguma limitação deficiência mental/intelectual permanente que limite as suas atividades habituais, como trabalhar, ir à escola, brincar etc.? – V0617
A questão 4 teve como opção de resposta somente “sim” ou “não”; as demais apresentaram as seguintes possibilidades:
Sim, não consegue de modo algum.
Sim, grande dificuldade.
Sim, alguma dificuldade.
Não, nenhuma dificuldade.
Seguindo a classificação do IBGE (2018), incorporada a partir da Nota Técnica no 1/2018, foram consideradas pessoas com deficiência neste artigo todas aquelas que responderam ter grande dificuldade ou não conseguir de modo algum – as alternativas a ou b – realizar pelo menos uma das ações investigadas nas questões 1 a 3. Além delas, as pessoas que responderam “sim” à questão 4. Até hoje causa estranhamento a aplicação dessa “linha de corte” pela redução drástica no número de pessoas com deficiência em comparação com a primeira divulgação do Censo de 2010. A crítica se deve ao receio de que, com isso, as políticas públicas que tenham as pessoas com deficiência como seu público-alvo percam espaço na agenda política e, consequentemente, no orçamento. Por outro lado, entendemos que a abordagem é apropriada para o tema deste estudo, independentemente das recomendações internacionais, pois enfatiza as pessoas que se deparam com maiores entraves ao acesso à educação e ao mercado de trabalho em nosso país (Garcia & Maia, 2014, Botelho & Lenzi, 2024).
O Censo 2010 fornece, ainda, informação sobre a graduação cursada pelos indivíduos que concluíram o nível superior de ensino (V6352), bem como sobre a ocupação principal das pessoas que estavam trabalhando no período de referência da Pesquisa (V6461). Com essas informações é possível agrupar os graduados e ocupados nas áreas CTEM, conforme as categorias da Estrutura dos Cursos Superiores e da Classificação de Ocupações para Pesquisas Domiciliares (COD), adotadas pelo IBGE no Censo 2010. Na ausência de consenso sobre as categorias a serem incluídas, foram selecionados os cursos nos grupos 4 e 5 – “Ciências, Matemática e Computação” e “Engenharia, Produção e Construção” – e as ocupações nos subgrupos 21 e 25 – “Profissionais da Ciência e da Engenharia” e “Profissionais de Tecnologias da Informação e Comunicações”.
Todos os indicadores foram construídos para homens e mulheres (V0601), a partir dos 25 anos (V6036), idade adequada para considerar a população com nível superior completo (V6400). Nas análises de mercado de trabalho, foram abrangidas somente as pessoas que efetivamente concluíram esse nível de ensino, garantindo a comparação entre grupos com a mesma escolaridade. Por último, mas não menos importante, registra-se que, ao final do artigo, consta um Apêndice que apresenta os dados completos utilizados para a elaboração dos gráficos apresentados na próxima seção.
Mulheres com deficiência nas carreiras CTEM no Brasil: formação, ocupação e rendimentos
As mulheres com deficiência estão sub-representadas nas carreiras CTEM no Brasil, ou seja, elas aparecem nesse setor em proporção menor do que na população em geral. De acordo com o Censo Demográfico de 2010, as mulheres com deficiência representavam 5,6 % da população a partir dos 25 anos de idade. Porém, considerando as pessoas na mesma faixa etária, com nível superior completo e ocupadas nas áreas CTEM, elas constituíam apenas 0,4 % do grupo5 (Gráfico 1). Homens sem deficiência foram o único perfil populacional, no cruzamento entre sexo e deficiência, sobrerrepresentado nas ocupações CTEM.
Gráfico 1. Distribuição da população e dos ocupados em CTEM, 2010.
Descrição: Gráfico com duas barras. A primeira indica a distribuição percentual da população com 25 anos ou mais de idade em quatro grupos: mulheres com deficiência, homens com deficiência, mulheres sem deficiência e homens sem deficiência. A segunda indica a distribuição percentual dos ocupados em CTEM nos mesmos quatro grupos, sendo possível identificar a subrepresentação principalmente das mulheres com deficiência. Os percentuais constam em tabela anexa no final do artigo.
Microdados do Censo 2010, elaboração da autora (2025).
Esse fenômeno pode ser compreendido levando-se em consideração três etapas distintas de ingresso nas carreiras CTEM: o acesso ao ensino superior, a formação em uma graduação da área e a efetiva ocupação no mercado de trabalho.
As pessoas com deficiência estão até hoje em desvantagem em relação às pessoas sem deficiência em todas as fases da trajetória escolar. Essas desvantagens se acumulam ao longo do percurso e se refletem na maior distância entre os dois grupos no nível de ensino mais elevado (IBGE, 2023). Esse também era o cenário no Brasil em 2010. Nesse ano, 12,1 % das pessoas sem deficiência com 25 anos ou mais de idade haviam completado o ensino superior, mais que o triplo da proporção de pessoas com deficiência (3,9 %) na mesma faixa etária que tinham alcançado tal título (Gráfico 2).
A maior escolarização feminina que veio se construindo na segunda metade do século XX na população em geral só começou a se refletir nos indicadores educacionais das pessoas com deficiência no Censo 2010. Na operação censitária anterior, realizada em 2000, os homens com deficiência ainda eram mais alfabetizados e tinham mais anos de estudo do que as mulheres (IBGE, 2000). Finalmente, em 2010, 4,0 % das mulheres com deficiência a partir de 25 anos de idade estavam graduadas, enquanto 3,7 % dos homens com deficiência tinham concluído o ensino superior.
Gráfico 2. Proporção de pessoas com ensino superior completo, 2010.
Descrição: gráfico de colunas que indicam o percentual de pessoas com Ensino Superior completo. Há seis colunas: total, mulheres e homens com deficiência; total mulheres e homens sem deficiência. Destaca-se a ampla desvantagem de pessoas com deficiência. Os percentuais constam em tabela anexa no final do artigo.
Microdados do Censo 2010, elaboração da autora (2025).
No entanto, esse mesmo patamar de escolaridade entre as pessoas com deficiência não se traduziu automaticamente em equidade na proporção de homens e mulheres graduados em cursos de Ciência e Tecnologia. Com efeito, as mulheres com deficiência tinham a menor proporção de formados nas áreas CTEM – 6,6 % das pessoas com nível superior completo desse grupo populacional (Gráfico 3).
É interessante notar que havia maior proporção de homens com deficiência com graduação em CTEM do que mulheres sem deficiência, 19,1 % e 8,1 %, respectivamente. Esse resultado sugere que as dinâmicas próprias das relações de gênero, como a “ameaça de estereótipo”, podem ter maior peso do que as barreiras ambientais e o capacitismo, uma vez superados os entraves ao acesso ao ensino superior. A interação entre as duas características revela, então, os homens sem deficiência como o grupo com a maior proporção de graduados com diploma em CTEM (21,2 %).
Gráfico 3. Proporção de graduados em cursos CTEM, 2010.
Descrição: gráfico de colunas que indicam o percentual de pessoas com Ensino Superior completo graduadas em CTEM. Há seis colunas: total, mulheres e homens com deficiência; total mulheres e homens sem deficiência. Destaca-se a ampla desvantagem de ambos os grupos de mulheres. Os percentuais constam em tabela anexa no final do artigo.
Microdados do Censo 2010, elaboração da autora (2025).
Outra forma de visualizar a desigualdade de gênero é comparando a distribuição de graduados com diploma nessas disciplinas entre homens e mulheres com a mesma distribuição nas demais áreas de estudo. Enquanto entre os formados em CTEM a proporção de mulheres é de pouco mais de 1/3, nas outras áreas elas ultrapassam 60 %, padrão que se verifica tanto entre as pessoas com deficiência, quanto entre as sem deficiência (Gráfico 4).
Gráfico 4. Distribuição dos graduados por sexo, 2010.
Descrição: gráfico com quatro colunas que indicam a distribuição percentual das pessoas graduadas em CTEM e das pessoas graduadas em outras áreas, por sexo. Duas referem-se a pessoas com deficiência e outras duas às pessoas sem deficiência. Ambos os grupos de mulheres estão subrepresentadas em CTEM. Os percentuais constam em tabela anexa no final do artigo.
Microdados do Censo 2010, elaboração da autora (2025).
As pessoas formadas nas áreas CTEM têm maiores chances de estarem ocupadas do que as pessoas com ensino superior completo em outros cursos. Ou seja, estar sub-representada nessas graduações pode ser um obstáculo ao acesso a postos de trabalho – evitamos asseverar uma relação de causalidade, tendo em vista que outras variáveis que impactam os resultados no mercado de trabalho não estão sendo isoladas, mas se trata de um cenário corroborado por relatórios internacionais (World Economic Forum, 2023; NSB & NSF, 2024).
De todo modo, o nível de ocupação dos formados em CTEM é maior do que o dos formados em outras áreas para todos os grupos ora analisados (Gráfico 5). Esse indicador mensura o total de pessoas ocupadas6 em um período de referência, em postos formais ou informais, na população com a faixa etária selecionada.
Gráfico 5. Nível de ocupação, 2010.
Descrição: gráfico de colunas que indicam o nível de ocupação. Há quatro colunas que se repetem para as pessoas com e sem deficiência: mulheres graduadas em CTEM, homens graduados em CTEM, mulheres graduadas em outras áreas, homens graduados em outras áreas. Mulheres com deficiência têm os menores níveis de ocupação, mas a desvantagem se reduz quando graduadas em CTEM. Os dados constam em tabela anexa no final do artigo.
Microdados do Censo 2010, elaboração da autora (2025).
A transição entre a universidade e o mercado de trabalho não ocorre da mesma maneira para os diferentes grupos populacionais. Novamente, as mulheres com deficiência constituem o grupo que parece enfrentar maior dificuldade para alcançar a correspondência entre sua formação e sua ocupação. Sobre elas, pesam, ao mesmo tempo, a divisão sexual do trabalho (Botelho, 2022), vieses implícitos e ambientes de trabalho hostis à presença feminina e a discriminação contra trabalhadores com deficiência. Assim, entre as mulheres com deficiência graduadas em CTEM, ocupadas, 16,3 % estavam atuando em carreiras nesse campo e 83,7 % em outras áreas. Entre as mulheres sem deficiência com a mesma formação, ocupadas, 24,1 % trabalhavam em carreiras CTEM. Já a diferença em relação aos homens com deficiência era ainda maior. Entre aqueles graduados em cursos CTEM e ocupados, 33,6 % trabalhavam no setor (Gráfico 6).
Gráfico 6. Distribuição dos graduados em cursos CTEM ocupados por ocupação principal, 2010.
Descrição: gráfico com barras que indicam a distribuição percentual dos grupos graduados em CTEM segundo a sua área de ocupação principal: CTEM ou outra. Há quatro barras, para mulheres e homens com deficiência e para mulheres e homens sem deficiência. Mulheres com deficiência são as que menos estão em ocupações compatíveis com a formação. Os percentuais constam em tabela anexa no final do artigo.
Microdados do Censo 2010, elaboração da autora (2025).
Estar ocupado em uma carreira CTEM representa estar bem-posicionado no mercado de trabalho, na medida em que o setor oferece postos com melhores remunerações. Ocupadas em carreiras CTEM, as mulheres com deficiência auferiam habitualmente, em média, R$3.637,00 por mês7. Fora dessas carreiras, mesmo graduadas, as mulheres com deficiência tinham rendimento médio de R$2.291,00 (Gráfico 7). Garantir um emprego em CTEM não chega a ser suficiente para evitar que as mulheres com deficiência estejam em desvantagem em relação aos demais grupos, mas reduz as desigualdades.
Considerando apenas as pessoas graduadas que trabalhavam em outras áreas, as mulheres com deficiência recebiam 89 % da remuneração das mulheres sem deficiência. Já as mulheres com deficiência graduadas que trabalhavam em carreiras CTEM recebiam 94 % do rendimento de seus pares do sexo feminino sem deficiência. A mesma comparação com os homens com deficiência resulta em proporções de 55 % e 67 % e com os homens sem deficiência de 50 % e 67 %, respectivamente. Em outras palavras, mesmo quando se observam apenas pessoas com nível superior completo, as mulheres com deficiência recebiam somente metade do que os homens sem deficiência fora das áreas CTEM. Entre os profissionais desse setor, elas ultrapassavam dois terços da renda deles.
Gráfico 7. Rendimento médio habitual no trabalho principal, 2010.
Descrição: gráfico de colunas que indicam os rendimentos no trabalho principal. Há quatro colunas que se repetem para as pessoas com e sem deficiência: mulheres ocupadas em CTEM, homens ocupados em CTEM, mulheres ocupadas em outras áreas, homens ocupados em outras áreas. Mulheres com deficiência têm os menos rendimenos mas o hiato salarial se reduz quando ocupadas em CTEM. Os dados constam em tabela anexa no final do artigo.
Microdados do Censo 2010, elaboração da autora (2025).
Considerações finais e perspectivas de pesquisa
Espera-se que este estudo tenha cumprido o seu objetivo ao apresentar um panorama da participação das mulheres com deficiência nas carreiras científicas e evidenciar a existência de três gargalos a serem abordados para o incremento dessa participação:
-
as restrições de acesso ao ensino superior pelas pessoas com deficiência em geral;
-
o menor ingresso das mulheres nos cursos CTEM;
-
as dificuldades na transição e permanência no mercado de trabalho, em especial com alocação nas carreiras correspondentes.
Os referenciais teóricos atribuem esses gargalos, em parte, às dinâmicas próprias da divisão sexual do trabalho, da segregação ocupacional por gênero e à discriminação contra pessoas com deficiência.
Também restou demonstrado, a partir da literatura comentada e dos resultados apresentados, que o aumento da presença das mulheres com deficiência nas profissões CTEM tende a ser benéfico não só para o grupo, pelo acesso a postos com melhor remuneração, como para as atividades desempenhadas, pelos benefícios que a diversidade proporciona. É preciso, então, construir pontes para que esse e outros diagnósticos apresentados pela academia cheguem aos tomadores de decisões nas esferas públicas e privadas pertinentes.
Por último, mas não menos importante, cabe salientar a necessidade de dar seguimento a este estudo. Parece indispensável que as estudiosas e estudiosos da deficiência incorporem os dados do Censo 2022 para um retrato mais atual da participação feminina na Ciência e explorem o cruzamento com outros aspectos relevantes ao contexto brasileiro, como raça e região, bem como outras metodologias. Por exemplo, o recurso à modelagem estatística pode isolar e mensurar o efeito de variáveis educacionais complementares e outras relacionadas ao contexto familiar sobre os resultados encontrados. Já abordagens qualitativas podem contribuir agregando a percepção das mulheres com deficiência sobre as dinâmicas no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, urge que a deficiência seja incorporada como dimensão nos trabalhos das demais acadêmicas e acadêmicos que enfatizem desigualdades sociais. A deficiência não é menos relevante que outras características nas relações sociais, mormente nas relações de trabalho.
Apêndice
Tabelas de dados dos gráficos
Tabela 1. Dados para o Gráfico 1.
|
Grupos |
População com 25 anos ou mais de idade (%) |
Ocupados em CTEM (%) |
|
Mulheres com deficiência |
5,6 |
0,4 |
|
Homens com deficiência |
4,2 |
1,6 |
|
Mulheres sem deficiência |
46,6 |
25,9 |
|
Homens sem deficiência |
43,6 |
72,1 |
|
Total |
100,0 |
100,0 |
Microdados do Censo 2010, elaboração da autora (2025).
Tabela 2. Dados para o Gráfico 2.
|
Grupos |
Proporção de pessoas com ensino superior completo (%) |
|
Pessoas com deficiência |
3,9 |
|
Mulheres |
4,0 |
|
Homens |
3,7 |
|
Pessoas sem deficiência |
12,1 |
|
Mulheres |
13,5 |
|
Homens |
10,5 |
Microdados do Censo 2010, elaboração da autora (2025).
Tabela 3. Dados para o Gráfico 3.
|
Grupos |
Proporção de graduados em cursos CTEM (%) |
|
Pessoas com deficiência |
11,7 |
|
Mulheres |
6,6 |
|
Homens |
19,1 |
|
Pessoas sem deficiência |
13,6 |
|
Mulheres |
8,1 |
|
Homens |
21,2 |
Microdados do Censo 2010, elaboração da autora (2025).
Tabela 4. Dados para o Gráfico 4.
|
Grupos e graduação concluída |
Mulheres (%) |
Homens (%) |
Total (%) |
|
Pessoas com deficiência |
|||
|
Cursos CTEM |
33,4 |
66,6 |
100,0 |
|
Outras áreas |
62,4 |
37,6 |
100,0 |
|
Pessoas sem deficiência |
|||
|
Cursos CTEM |
34,3 |
65,7 |
100,0 |
|
Outras áreas |
61,5 |
38,5 |
100,0 |
Microdados do Censo 2010, elaboração da autora (2025).
Tabela 5. Dados para o Gráfico 5.
|
Grupos |
Nível de Ocupação (%) |
|
|
Graduados em CTEM |
Graduados em outras áreas |
|
|
Mulheres com deficiência |
63,6 |
60,6 |
|
Homens com deficiência |
69,5 |
63,8 |
|
Mulheres sem deficiência |
80,1 |
78,1 |
|
Homens sem deficiência |
88,5 |
87,0 |
Microdados do Censo 2010, elaboração da autora (2025).
Tabela 6. Dados para o Gráfico 6.
|
Grupos graduados em CTEM e ocupados |
Ocupação principal |
||
|
CTEM (%) |
Outras áreas (%) |
Total (%) |
|
|
Pessoas com deficiência |
|||
|
Mulheres |
24,1 |
75,9 |
100,0 |
|
Homens |
36,7 |
63,3 |
100,0 |
|
Pessoas sem deficiência |
|||
|
Mulheres |
16,3 |
83,7 |
100,0 |
|
Homens |
33,6 |
66,4 |
100,0 |
Microdados do Censo 2010, elaboração da autora (2025).
Tabela 7. Dados para o Gráfico 7.
|
Grupos |
Rendimento habitual no trabalho principal (R$) |
|
|
Ocupados em CTEM |
Ocupados em outras áreas |
|
|
Mulheres com deficiência |
3637 |
2291 |
|
Homens com deficiência |
5413 |
4179 |
|
Mulheres sem deficiência |
3879 |
2565 |
|
Homens sem deficiência |
5468 |
4613 |
Nota: Valores nominais do ano de 2010.
Microdados do Censo 2010, elaboração da autora (2025).







